King Kong é a narrativa de um encontro de opostos em que a diferença sucumbe no final. Mas ao
mesmo tempo revela que, do acidente entre a aparência e a sinceridade, pode emergir
a essência, o amor entre criaturas díspares.
NEI DUCLÓS
A diferença extrema não é tolerada no mundo que a tudo padroniza.
O Mesmo é a lei, para evitar o confronto, o choque dos contrários, pois o
conflito é fonte de ansiedade e, o que é pior, de prejuízos. No fundo, procura-se evitar a busca da
coragem, pois solucionar a diferença é possível e é capaz de promover a paz
interior necessária para a sobrevivência. Isso é perigoso sob muitos aspectos. Apostar
na mesmice é eternizar a imobilidade e o consumo sem críticas, condenar à morte
a criatura humana, dialética por natureza, tudo em função do lucro.
Na obra cultural ou na do espetáculo, a diferença aparece
sempre como uma maldição. Na comédia romântica, o verdadeiro casal briga o
tempo todo e jamais se encontra, a não ser no final, quando a cai a ficha de um
ou dos dois. Na literatura, noivos de famílias adversárias, como em Romeu e
Julieta, acabam mortos. Nos filmes de ficção, o exagero da diferença revela a
impossibilidade absoluta, a não ser que haja uma chance para a imaginação, mãe
do reconhecimento mútuo, da identificação prazerosa, da curiosidade entre
opostos. É o que acontece com King Kong, um roteiro que por muitos motivos
tornou-se um clássico (que merece ser estudado em classe).
Uma das mentiras de George W. Bush na época do atentado às
Torres Gêmeas em 2001 foi a de que nunca tinha ocorrido a ninguém um ataque de
avião aos edifícios gigantescos. Mentira porque no filme King Kong, de 1933, escrita
originalmente pelo novelista Edgard Wallace e o produtor de cinema e roteirista
Merian Cooper, foi exatamente isso o que aconteceu: aviões atacaram o Empire
State Building, que abrigava o gorilão gigantesco. Em 1976, numa nova versão da
história, King Kong é atacado nas próprias Torres Gêmeas, que substituem o
Empire. Ou seja, a sugestão estava nas fuças de todo o mundo.
King Kong é um filme zipado, com inúmeros cruzamentos e sínteses.
Está na origem da moderna indústria do espetáculo, que misturou personagens
animados com pessoas reais, e de sua crítica, onde a busca do lucro é
exorcizada. E tem como fonte um conto clássico francês, A Bela e a Fera, que já
tinha sido reciclada de maneira brilhante por Vitor Hugo em Notre Dame de Paris,
filmada em 1939 com Charles Laughton como o Corcunda e Maureen O´Hara como a
cigana Esmeralda (houve a versão de 1956, com Anthony Quinn e Gina Lollobrigida,
que também é boa).
Vi as três versões da história de King Kong. É fraca a de 1976, dirigida por John Guilhermin. Valem a clássica de 1933 e a de 2005, dirigido por Peter Jackson e com Naomi Watts no papel da moça
sequestrada e apaixonada pelo macaco. King
Kong de 2005 é sobre um filme que está sendo feito a bordo de um navio rumo a
uma ilha desconhecida. A moça é atriz e o macaco acaba virando atração da Broadway.
Filme sobre cinema, como todos. É inteiramente calcado no roteiro de 1933, que
por sua vez se inspira em A Bela e a Fera, um conto em que a família entrega a
donzela para o bruto motivada por uma dívida.
A causa é sempre um evento importante que tira o pai de casa
e o leva a encrencar-se com o monstro. Isso faz com que precise da filha caçula
para poder domá-lo. Em Vitor Hugo, o preceptor do Corcunda quer possuir a bela
e acaba destruindo o amor que surge no casal. Os que deviam proteger a bela a
entregam para a barbárie, mas a beleza acaba resolvendo a parada. Trata-se de
uma denúncia: o acomodamento e a covardia são a verdadeira brutalidade, e não a
feiura do monstro.
Segundo a Wikipédia, a Bela e A Fera é um conto “originalmente
escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve, em 1740, e tornou-se
mais conhecido em sua versão de 1756, por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont,
que resumiu e modificou a obra de Villeneuve. Adaptada, filmada e encenada
inúmeras vezes, o conto apresenta diversas versões que diferem do original e se
adaptam a diferentes culturas e momentos sociais.” A Fera é um príncipe amaldiçoado
que só volta à sua forma original ao encontrar o verdadeiro amor (aquele que
não se guia pela aparência, mas assim mesma a celebra, já que a fera some).
No cinema, é a indústria do espetáculo que põe tudo a
perder. Primeiro, procura a fera em seus redutos e oferece a donzela par atraí-lo
e depois chantagear o público com a atração do amor impossível. O núcleo do
drama é o confinamento. Só é possível o amor entre a gigantesca criatura e a
moça de Nova York se estiverem isolados num penhasco olhando o por de sol, ou
num momento terminal no alto do Empire, quando ocupam o pedestal de uma
plataforma da civilização e estão mais sós do que nunca, atacados por ferozes
teco-tecos e balas de metralhadora.
O humanismo francês (que reverte a tragédia com um final
feliz) nada tem a ver com a brutalidade americana, que acaba matando o macaco
para colocar no seu lugar o amor normal, o rapaz bem apessoado e talentoso, que
fica com a moça temporariamente apaixonada pelo monstro. A diferença é domada
de forma criminosa. Mas há momentos em que ela nos encanta. Na versão de 1933,
é tocante e hilária a cena em que o gorila despe a moça, a despetala de suas
roupas não completamente, numa sugestão erótica emocionante. Na de 2005, o
passeio entre os dois no lago gelado, quando rodopiam apaixonados, funciona,
apesar de tudo. Claro que são interrompidos por um petardo, uma bala de canhão
disparado pelos militares americanos, sempre atentos.
Vi esses dias um desenho animado na manhã da Globo e notei
uma cena idêntica à de King Kong de 1933: um ritual indígena assustador com
fogueiras e grandes tambores e nativos ferozes dançando. A hegemonia branca
excludente tem seu paradigma em King Kong, que também gerou outros filmes, como
reconhecidamente Jurassic Park, pois a luta do macaco contra o Tiranossauro Rex
inspirou completamente muitas passagens da obra de Steven Spielberg. O próprio
filme Corcunda de Notre Dame de 1956 tem muito a ver com King Kong, pois em
ambos a fera leva a bela para o alto de algum lugar e lá repartem momentos de intimidade.
Naomi Watts está perfeita na sua paixão cheia de dúvidas
pela bizarrice. Seu rosto é uma antologia de sentimentos contraditórios.
Lindíssima, ela imprime emoção em cada frame, fazendo-nos esquecer o exagero
proposital para gerar sensação espetacular. Uma grande intérprete resolve tudo sem
precisar dizer nada. O resto – piruetas e números circenses de perseguição – é secundário.
O que vale é o coração manobrando o papel de Naomi, esplêndida como o amor
impossível do bruto que caiu na asneira de amá-la e por essa bobagem pagou com
a vida, porque, os apaixonados sabem, sempre vale a pena.
RETORNO - Foto
principal e a terceira: Naomi Watts em cena. A foto do meio é Maureen O´Hara e Charles Laugton
em 1939, dois gênios em ação.