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7 de julho de 2012

KING KONG: A DIFERENÇA DOMADA




King Kong é a narrativa de um encontro de opostos  em que a diferença sucumbe no final. Mas ao mesmo tempo revela que, do acidente entre a aparência e a sinceridade, pode emergir a essência, o amor entre criaturas díspares.

NEI DUCLÓS

A diferença extrema não é tolerada no mundo que a tudo padroniza. O Mesmo é a lei, para evitar o confronto, o choque dos contrários, pois o conflito é fonte de ansiedade e, o que é pior, de prejuízos.  No fundo, procura-se evitar a busca da coragem, pois solucionar a diferença é possível e é capaz de promover a paz interior necessária para a sobrevivência. Isso é perigoso sob muitos aspectos. Apostar na mesmice é eternizar a imobilidade e o consumo sem críticas, condenar à morte a criatura humana, dialética por natureza, tudo em função do lucro.

Na obra cultural ou na do espetáculo, a diferença aparece sempre como uma maldição. Na comédia romântica, o verdadeiro casal briga o tempo todo e jamais se encontra, a não ser no final, quando a cai a ficha de um ou dos dois. Na literatura, noivos de famílias adversárias, como em Romeu e Julieta, acabam mortos. Nos filmes de ficção, o exagero da diferença revela a impossibilidade absoluta, a não ser que haja uma chance para a imaginação, mãe do reconhecimento mútuo, da identificação prazerosa, da curiosidade entre opostos. É o que acontece com King Kong, um roteiro que por muitos motivos tornou-se um clássico (que merece ser estudado em classe).

Uma das mentiras de George W. Bush na época do atentado às Torres Gêmeas em 2001 foi a de que nunca tinha ocorrido a ninguém um ataque de avião aos edifícios gigantescos. Mentira porque no filme King Kong, de 1933, escrita originalmente pelo novelista Edgard Wallace e o produtor de cinema e roteirista Merian Cooper, foi exatamente isso o que aconteceu: aviões atacaram o Empire State Building, que abrigava o gorilão gigantesco. Em 1976, numa nova versão da história, King Kong é atacado nas próprias Torres Gêmeas, que substituem o Empire. Ou seja, a sugestão estava nas fuças de todo o mundo.

King Kong é um filme zipado, com inúmeros cruzamentos e sínteses. Está na origem da moderna indústria do espetáculo, que misturou personagens animados com pessoas reais, e de sua crítica, onde a busca do lucro é exorcizada. E tem como fonte um conto clássico francês, A Bela e a Fera, que já tinha sido reciclada de maneira brilhante por Vitor Hugo em Notre Dame de Paris, filmada em 1939 com Charles Laughton como o Corcunda e Maureen O´Hara como a cigana Esmeralda (houve a versão de 1956, com Anthony Quinn e Gina Lollobrigida, que também é boa).  

Vi as três versões da história de King Kong. É fraca a de 1976, dirigida por John Guilhermin. Valem a clássica de 1933 e a de 2005, dirigido por Peter Jackson e com Naomi Watts no papel da moça sequestrada e apaixonada pelo macaco.  King Kong de 2005 é sobre um filme que está sendo feito a bordo de um navio rumo a uma ilha desconhecida. A moça é atriz e o macaco acaba virando atração da Broadway. Filme sobre cinema, como todos. É inteiramente calcado no roteiro de 1933, que por sua vez se inspira em A Bela e a Fera, um conto em que a família entrega a donzela para o bruto motivada por uma dívida.

A causa é sempre um evento importante que tira o pai de casa e o leva a encrencar-se com o monstro. Isso faz com que precise da filha caçula para poder domá-lo. Em Vitor Hugo, o preceptor do Corcunda quer possuir a bela e acaba destruindo o amor que surge no casal. Os que deviam proteger a bela a entregam para a barbárie, mas a beleza acaba resolvendo a parada. Trata-se de uma denúncia: o acomodamento e a covardia são a verdadeira brutalidade, e não a feiura do monstro.  

Segundo a Wikipédia, a Bela e A Fera é um conto “originalmente escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve, em 1740, e tornou-se mais conhecido em sua versão de 1756, por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, que resumiu e modificou a obra de Villeneuve. Adaptada, filmada e encenada inúmeras vezes, o conto apresenta diversas versões que diferem do original e se adaptam a diferentes culturas e momentos sociais.” A Fera é um príncipe amaldiçoado que só volta à sua forma original ao encontrar o verdadeiro amor (aquele que não se guia pela aparência, mas assim mesma a celebra, já que a fera some).

No cinema, é a indústria do espetáculo que põe tudo a perder. Primeiro, procura a fera em seus redutos e oferece a donzela par atraí-lo e depois chantagear o público com a atração do amor impossível. O núcleo do drama é o confinamento. Só é possível o amor entre a gigantesca criatura e a moça de Nova York se estiverem isolados num penhasco olhando o por de sol, ou num momento terminal no alto do Empire, quando ocupam o pedestal de uma plataforma da civilização e estão mais sós do que nunca, atacados por ferozes teco-tecos e balas de metralhadora.

O humanismo francês (que reverte a tragédia com um final feliz) nada tem a ver com a brutalidade americana, que acaba matando o macaco para colocar no seu lugar o amor normal, o rapaz bem apessoado e talentoso, que fica com a moça temporariamente apaixonada pelo monstro. A diferença é domada de forma criminosa. Mas há momentos em que ela nos encanta. Na versão de 1933, é tocante e hilária a cena em que o gorila despe a moça, a despetala de suas roupas não completamente, numa sugestão erótica emocionante. Na de 2005, o passeio entre os dois no lago gelado, quando rodopiam apaixonados, funciona, apesar de tudo. Claro que são interrompidos por um petardo, uma bala de canhão disparado pelos militares americanos, sempre atentos.

Vi esses dias um desenho animado na manhã da Globo e notei uma cena idêntica à de King Kong de 1933: um ritual indígena assustador com fogueiras e grandes tambores e nativos ferozes dançando. A hegemonia branca excludente tem seu paradigma em King Kong, que também gerou outros filmes, como reconhecidamente Jurassic Park, pois a luta do macaco contra o Tiranossauro Rex inspirou completamente muitas passagens da obra de Steven Spielberg. O próprio filme Corcunda de Notre Dame de 1956 tem muito a ver com King Kong, pois em ambos a fera leva a bela para o alto de algum lugar e lá repartem momentos  de intimidade.

Naomi Watts está perfeita na sua paixão cheia de dúvidas pela bizarrice. Seu rosto é uma antologia de sentimentos contraditórios. Lindíssima, ela imprime emoção em cada frame, fazendo-nos esquecer o exagero proposital para gerar sensação espetacular. Uma grande intérprete resolve tudo sem precisar dizer nada. O resto – piruetas e números circenses de perseguição – é secundário. O que vale é o coração manobrando o papel de Naomi, esplêndida como o amor impossível do bruto que caiu na asneira de amá-la e por essa bobagem pagou com a vida, porque, os apaixonados sabem, sempre vale a pena.  

RETORNO -  Foto principal e a terceira: Naomi Watts em cena. A foto do meio é Maureen O´Hara e Charles Laugton em 1939, dois gênios em ação.