16 de julho de 2012

CINEMA NA FRONTEIRA DA HISTÓRIA



Qual a relação profissional entre William Faulkner e John Ford? Ambos trabalharam sob a influência de um gênio de Hollywood, Irving Thalberg, que definiu novos parâmetros para a nascente indústria do cinema.


NEI DUCLÓS

Descubro que William Faulkner, Nobel de Literatura de 1949, está citado no elenco de roteiristas de mais um John Ford, Ao Rufar dos Tambores, ou Drums Along the Mohawk, de 1939, com Henry Fonda e Claudette Colbert. O site IMDB, que costuma ser completo nas suas fichas, coloca o grande escritor como “não creditado”. Fui atrás, armado de Wikipedia e Google Books (que reproduz páginas remotas específicas sobre o assunto que nos interessa).  Leio que Faulkner esteve presente no início do processo de adaptação da novela de Walter D. Edmonds  (maior best-seller da época depois de E O vento levou, de Margaret Mitchell), sobre o casal de pioneiros na Guerra de Independência americana. Mas foi considerado muito denso, inapropriado para o que os produtores queriam.

Há um folclore que os pesquisadores demoliram nos últimos anos de que Faulkner sofria em Holywood, o que não é verdade, só em parte, em alguns momentos. Ele ganhava bem, 500 dólares semanais no início, chegando a mil depois de alguns anos. Quatro mil dólares por mês no final dos anos 30 não eram pouca coisa. Testemunhos confirmam que Faulkner levava a sério os encargos dos scripts, apesar de ter tido dificuldades , pois não se sentia à altura do que esperavam dele. Chegou a sumir por uma semana logo depois de ter sido introduzido numa sessão exclusiva em que se decidiam os rumos de um filme.

Com baixa autoestima (ele tinha!), Faulkner timidamente propôs fazer coisas pequenas, inclusive elaborar desenhos para o Mickey Mouse. Mas Holywood imaginava grandes planos para ele, e o encarregou de produções importantes, baseadas ou não em sua literatura., que acabou se beneficiando dessa interação com os scripts, conforme disse mais tarde. Por que os chefões do estúdio sabiam que ali existia um escritor que poderia render bem?

A resposta é a biografia do mais importante executivo da indústria do espetáculo dos anos 20 e 30, o gênio Irving Thalberg, um self made man que de secretário particular do presidente da Universal, Carl Laemmle, virou o mais importante executivo do ramo. Thalberg influenciou na contração de Faulkner e Scott Fitzgerald (que o retratou no romance The Last Tycoon), decidiu a carreira de Greta Garbo e criar novos paradigmas para a nascente indústria, inaugurando novos hábitos como demitir diretores, como fez com Erich Von Stroheim, o austríaco que desperdiçava dinheiro em bizarrices da produção.

“Se você não fosse meu superior eu lhe amassaria a cara” disse o Stroheim, furioso. "Que isso não seja empecilho para o senhor", rebateu Irving. De fala mansa, se impunha com sua cara de menino e nas reuniões tinha sempre não apenas a melhor idéia para solucionar tudo, como a “única” idéia segundo um admirador. Cecil B. DeMille foi o primeiro a querer contratá-lo, dizendo para seu sócio, Jesse Lasky: "O garoto é um gênio. Posso ver isso. Eu sei disso”.

Quando um roteiro não funcionava na tela, ele solucionava. Foi Thalberg quem começou a colocar mais de uma estrela nos filmes, já que a grande depressão dos anos 30 descapitalizou as massas que pagavam ingresso. Era preciso mais. Irving também junto essa fome por estrelas com a vontade de comer, ou seja, com uma produção cara e caprichada em cima de roteiros de qualidade, como romances, contos e peças de teatro de escritores talentosos.

O agente literário de Faulkner, Ben Wasson, que trabalhava para o chefe da agência dos talentos Lelan Hayworth, indicou Faulkner,uma iniciativa estimulada por Irving Thalberg, que só na Metro supervisionou 400 filmes. Thalberg Sofria de febre reumática e morreu de pneumonia aos 37 anos. Devido à sua doença, estudava em casa, apoiado pela mãe. De ascendência judaico-germânica, tornou-se um dev orador de livros e quando se ofereceu num anúncio de jornal tinha sólida formação, aliada a uma vontade enorme de vencer suas dificuldades. Ao ser escolhido, deslumbrou os poerosos, como pode-se ver neste perfil

A capacidade quase infalível de Thalberg de combinar qualidade com o sucesso comercial, para sintonizar arte com as exigências do caixa, fez com que ele não ficasse satisfeito com o trabalho dos roteiristas de Drums Along the Mohawk. Os direitos do livro foram comprados por 25 mil dólares e Irving não queria uma patriotada, mas sim um romance histórico focado no casal de pioneiros que enfrenta o ataque dos britânicos aliados a índios. Havia um problema de cara: como livrar os ingleses de semelhante papel? A solução encontrada foi colocar toda a culpa no partido conservador Tory e também nos seus aliados nativos.

A segunda providência foi evitar a carga excessiva de História. Uma das roteiristas, Sonya Levien, tinha criado uma longa abertura mostrando uma conversa entre o protagonista Gil Martin (Fonda) e o general responsável pela fronteira (o vale ficava nos arredores da atual Nova York). A discussão era sobre o apoio federal à luta naquele ermo, que estava a cargo dos fazendeiros como Martin. Irving cortou toda essa introdução e focou a abertura no casamento de Gil e Lana, ela uma cocota que sofreria muito na sua adaptação à vida dura no meio do mato assolado pelos ataques dos inimigos.

Lamar Trotti e Bess Meredith foram os outros roteiristas contratados e que ajudaram a produzir o sucesso de Ford, que já pegou o roteiro pronto e deu seu toque de gênio. Só a cena da despedida de Gil, com Lana seguindo a tropa até se perder na vasta planície, deitando-a por terra, é de fazer chorar as pedras. No filme estão os elementos fordianos clássicos: a vida solidária de uma comunidade saudável, ou seja, que convive na alteridade (os bêbados, os pastores, as viúvas, as donas de casa, os soldados etc.); o confronto entre a macheza da luta e a barra pesada da vida feminina - o marginal e a prostituta de Stagecoach, o tio e a sobrinha de The Searchers, e neste filme, o lutador que fica tonto e em pânico diante da maternidade, arrancando gargalhadas gerais com sua fragilidade masculina.

Houve uma briga federal entre os historiadores e Thalberg, pois eles queriam uma reprodução da História oficial e o produtor, uma obra da indústria do espetáculo. Thalberg tirou o excesso de patriotada em torno da bandeira e fez a política interagir com os protagonistas, que ganharam destaque. O foco foi não na Independência, mas no casal e suas desventuras, a perda do primeiro bebê, o sítio sendo queimado pelos índios, a vida como empregados, as separações provocadas pela guerra. Fonda já era estrela do estúdio Fox, responsável pela produção e para onde Thalberg tinha ido. Fonda era bileteria segura, pois estrelara sucessos como O Jovem Lincoln, também de John  Ford.

Na época o tema História tomava conta do cinema, com inúmeras produções em torno de figuras lendárias e batalhas. O maior sucesso da época, E o Vento Levou, fez parte desse movimento e desse debate. É um assunto generoso nos detalhes e cruzamentos, do qual este texto é apenas um aceno de longe, mais para estimular essa busca permanente. Pois assim é a pesquisa de cinema: a partir de um roteiro pegamos a pista de inúmeros vetores, passamos por talentos importantes e chegamos ao bom termo de saber um pouco mais sobre um filme antigo, mas significativo.


RETORNO -  Imagens desta edição: na foto de abertura, a cena citada da despedida das tropas; na segunda foto, Faulkner e na terceira, Thalberg.