Nei Duclós (*)
A publicidade de um carro zero quilômetro omite o mundo enigmático das oficinas. Logo que sai da fábrica, o bicho anda como se fosse mágica. Parece até que se movimenta orientado pelo esgar malicioso de bocas dos motoristas que se retorcem de prazer ao dirigir. Pelo menos é o que vemos nos comerciais. Mas olhinhos apertados, braços estirados no volante, companhias femininas banhadas de ouro e prata são apenas poeira nos olhos, porque a realidade muda rapidinho. Em pouco tempo, aquele organismo tão cobiçado, que trafega para a inveja dos contemporâneos, oferece um espetáculo de ruídos rascantes, fumaças fora de hora, luzes que jamais apagam.
Peça de automóvel é como célula: já vem programada para pifar, depende do modelo e da marca. Se os artífices das montadoras são capazes até de inocular cheiros específicos nos estofamentos, para aumentar o poder de sedução na hora da compra, se pesquisam até o barulho da porta quando se fecha para sugerir poder, ou simplesmente carícia para quem ouve, como não iriam decidir o mais importante? Ou seja, o momento exato em que você terá de livrar do seu pé de borracha favorito e desembolsar mais dinheiro, se quiser manter seu status de feliz proprietário de um zero.
Essa é a hora em que o sonho acaba e, se não dispomos da quantia exigida pelo resgate, ou teimamos em manter a mimosa baratinha adquirida na juventude, vamos cruzar o umbral das palavras enigmáticas. Aos poucos elas vão ficando mais familiares, na medida em que a conta do banco é esvaziada para mantermos o privilégio da locomoção movida a gasolina ou a álcool. No início, parece que não vai doer. O mecânico, ou o auto-elétrico da esquina, talvez resolva. Você aprende que não deveria ter deixado de dar doses maciças de hidrocarbonetos (ou algo parecido) para evitar que o carro acumule cracas e entupa as passagens de óleo.
Sim, ele é capaz de sofrer um enfarte. Se o cara que arrancou uma nota para obrigar a vítima a cumprir seus compromissos a pé não conseguir resolver, é melhor não insistir e partir para o estabelecimento mais próximo. Pois fica difícil engolir explicações do tipo da já desmoralizada rebimbeca sueca. Sobram exemplos. O carro apresentou o mesmo defeito depois que o freguês se separou do dinheiro para o conserto, por um motivo simples: “Ele é eletrônico”, diz o solícito especialista, “então o que acontece é a memorização do erro. Por mais que a gente conserte, ele volta ao estado anterior”.
Isso pode até colar, quando há uma capacidade gigantesca de se acreditar em tudo o que dizem. Mas a ficha acaba caindo e parte-se para a ignorância: contra todos os conselhos, entramos ressabiados numa autorizada. Gasta-se então os tubos na troca de pneus, válvulas, estofamento, limpa-parabrisas e outros supérfluos. Parece que saímos no lucro, pois é bem melhor colocar tudo na mão dos sabichões do que jogar grana fora em empresinhas de fundo de quintal.
Pois em menos de duas semanas o mesmo defeito dá as caras novamente. Os pneus estão tinindo, mas o carro não anda, ou não pega de primeira ou simplesmente se recusa a sair de casa. Carro ensinado não deixa ninguém na rua, mas também costuma ficar emburrado na garagem até que o proprietário tome uma atitude e chame um interventor.
O cara chega, faz uma chupeta, no bom sentido e leva novamente o insubstituível para longe. Até que um dia, depois de tantas experiências, o coitado resolve arriar no meio da estrada com a biela em pandarecos, fazendo o barulho de um matraquear assustador. O motor fundiu, era previsível. É preciso que a retífica tome conta e descubra, alarmada, que as camisas estão gastas. Sim, existem camisas no motor. E elas custam o dobro do inimaginável.
Por isso, quando os pobres sofredores vêem os astros estrangeiros de cinema passeando com as beldades brasileiras, em campanhas milionárias de carros do ano, movidos a esgares maliciosos, dá vontade de gritar uns palavrões: Biela! Virabrequim! Injeção eletrônica! Rebimbeca!
É justo. Há limites para o ser humano.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste domingo, 17 de agosto de 2008, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: ciclovia em Amsterdam, um exemplo de anti-pesadelo automotivo. Foto de Daniel Duclós.
A publicidade de um carro zero quilômetro omite o mundo enigmático das oficinas. Logo que sai da fábrica, o bicho anda como se fosse mágica. Parece até que se movimenta orientado pelo esgar malicioso de bocas dos motoristas que se retorcem de prazer ao dirigir. Pelo menos é o que vemos nos comerciais. Mas olhinhos apertados, braços estirados no volante, companhias femininas banhadas de ouro e prata são apenas poeira nos olhos, porque a realidade muda rapidinho. Em pouco tempo, aquele organismo tão cobiçado, que trafega para a inveja dos contemporâneos, oferece um espetáculo de ruídos rascantes, fumaças fora de hora, luzes que jamais apagam.
Peça de automóvel é como célula: já vem programada para pifar, depende do modelo e da marca. Se os artífices das montadoras são capazes até de inocular cheiros específicos nos estofamentos, para aumentar o poder de sedução na hora da compra, se pesquisam até o barulho da porta quando se fecha para sugerir poder, ou simplesmente carícia para quem ouve, como não iriam decidir o mais importante? Ou seja, o momento exato em que você terá de livrar do seu pé de borracha favorito e desembolsar mais dinheiro, se quiser manter seu status de feliz proprietário de um zero.
Essa é a hora em que o sonho acaba e, se não dispomos da quantia exigida pelo resgate, ou teimamos em manter a mimosa baratinha adquirida na juventude, vamos cruzar o umbral das palavras enigmáticas. Aos poucos elas vão ficando mais familiares, na medida em que a conta do banco é esvaziada para mantermos o privilégio da locomoção movida a gasolina ou a álcool. No início, parece que não vai doer. O mecânico, ou o auto-elétrico da esquina, talvez resolva. Você aprende que não deveria ter deixado de dar doses maciças de hidrocarbonetos (ou algo parecido) para evitar que o carro acumule cracas e entupa as passagens de óleo.
Sim, ele é capaz de sofrer um enfarte. Se o cara que arrancou uma nota para obrigar a vítima a cumprir seus compromissos a pé não conseguir resolver, é melhor não insistir e partir para o estabelecimento mais próximo. Pois fica difícil engolir explicações do tipo da já desmoralizada rebimbeca sueca. Sobram exemplos. O carro apresentou o mesmo defeito depois que o freguês se separou do dinheiro para o conserto, por um motivo simples: “Ele é eletrônico”, diz o solícito especialista, “então o que acontece é a memorização do erro. Por mais que a gente conserte, ele volta ao estado anterior”.
Isso pode até colar, quando há uma capacidade gigantesca de se acreditar em tudo o que dizem. Mas a ficha acaba caindo e parte-se para a ignorância: contra todos os conselhos, entramos ressabiados numa autorizada. Gasta-se então os tubos na troca de pneus, válvulas, estofamento, limpa-parabrisas e outros supérfluos. Parece que saímos no lucro, pois é bem melhor colocar tudo na mão dos sabichões do que jogar grana fora em empresinhas de fundo de quintal.
Pois em menos de duas semanas o mesmo defeito dá as caras novamente. Os pneus estão tinindo, mas o carro não anda, ou não pega de primeira ou simplesmente se recusa a sair de casa. Carro ensinado não deixa ninguém na rua, mas também costuma ficar emburrado na garagem até que o proprietário tome uma atitude e chame um interventor.
O cara chega, faz uma chupeta, no bom sentido e leva novamente o insubstituível para longe. Até que um dia, depois de tantas experiências, o coitado resolve arriar no meio da estrada com a biela em pandarecos, fazendo o barulho de um matraquear assustador. O motor fundiu, era previsível. É preciso que a retífica tome conta e descubra, alarmada, que as camisas estão gastas. Sim, existem camisas no motor. E elas custam o dobro do inimaginável.
Por isso, quando os pobres sofredores vêem os astros estrangeiros de cinema passeando com as beldades brasileiras, em campanhas milionárias de carros do ano, movidos a esgares maliciosos, dá vontade de gritar uns palavrões: Biela! Virabrequim! Injeção eletrônica! Rebimbeca!
É justo. Há limites para o ser humano.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste domingo, 17 de agosto de 2008, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: ciclovia em Amsterdam, um exemplo de anti-pesadelo automotivo. Foto de Daniel Duclós.
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