Nei Duclós (*)
Vejo filme com Morgan Freeman, em que ele encarna o personagem-narrador. Sua voz grave, pausada, representa a lucidez onipresente do autor, que acompanha a vida dos outros tomando partido, engajando-se, aconselhando, arrependendo-se. A trama não importa, mas sim esse lastro que é a voz de Freeman, recentemente acidentado, para desespero de seus admiradores, nesta época pobre de grandes atores e, pior, de vozes que convencem.
O cinema oferece a vantagem do script, elaborado e trabalhado pela respiração com a necessária cautela, o momento exato, a emoção sob medida. Temos poucos exemplos dessa arte cada vez mais complicada de se consumar, na medida em que o ruído ambiente aumenta e a cultura descartável se impõe como natural e eterna. Tanto é verdade que esses poucos são extremamente solicitados, como foi o caso por décadas do ator James Earl Jones, que fez a voz de Darth Wader, vilão de “Guerra nas Estrelas”, entre outros filmes.
Os americanos se defendem porque a locução dramática e profissional é uma escola antiga e atuante e sempre existe alguém que extrapola e fica na memória. No Brasil, os dois Paulos, o José e o César Peréio, dominaram o ofício por muito tempo, mas em geral somos pobres de grandes vozes. As exceções se rendem à ilusão de que são a própria divindade, o que é compreensível, dado o deserto em que vivemos. Qualquer voz que consiga clamar nele se sente, no mínimo, profeta.
Na música temos, para sempre, Dorival Caymmi. Achei excessivo o enfoque dado por ocasião da sua morte, ocorrida recentemente, de que ele era o bom baiano, folgazão, quase uma peça da comédia brasileira. Caymmi era extremamente dramático. Ele canta a pesca. Sua obra é um épico sobre a morte dos que lutam para sobreviver num ambiente hostil, o oceano, que atrai pela necessidade e seduz para uma armadilha mortal quando acena com o lazer em pleno expediente. O bem que o pescador tem no mar é uma ilusão, a substituição do trabalho pelo prazer.
A mulher que fica na espera da jangada enfrenta uma rival, Iemanjá, que rapta o pescador, exausto daquela tragédia. Voltar para quê? Melhor entregar-se nos braços do movimento feminino das ondas, que o leva para longe, para a doçura do afogamento, para fora das necessidades. Caymmi toma partido do pescador que morre pelo peixe, pelo pão. “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento. A jangada voltou só. Cadê você, cadê você?”
Sua Pasárgada é Maracangalha, uma utopia que transgride a vida doméstica e abraça o coletivo. É um desfile, um passeio, uma fuga, uma busca de convivência plural. Não se trata de gandaia pura e simples, como gostam de celebrar os atuais viciados no anacronismo. É uma convocação, um desejo imperioso de transcendência. Essa civilização de perdas precisa da superação, da celebração, do perdão para continuar em frente. O que chamam de conformismo, é na verdade o superlativo da perda, o sentimento do perdão. Pois é preciso voltar no dia seguinte, sem esquecer os que se foram.
A voz de Caymmi é um berço feito de alecrim num regato limpo, que nos leva para lá da rebentação. Com o passar do tempo será cada vez melhor, como todas as grandes vozes que nos embalam, confortam, alertam. Por isso as canções de Caymmi são sagradas. Elas são como capelas à beira mar, e sua obra, ditada por essa voz, compõe a imponência de uma catedral.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 26 de agosto de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagens de hoje: Morgan e Caymmi: o carisma de quem é eterno.
FILHO DE ANSELMO DUARTE ESCREVE PARA O DIÁRIO DA FONTE
Vejo filme com Morgan Freeman, em que ele encarna o personagem-narrador. Sua voz grave, pausada, representa a lucidez onipresente do autor, que acompanha a vida dos outros tomando partido, engajando-se, aconselhando, arrependendo-se. A trama não importa, mas sim esse lastro que é a voz de Freeman, recentemente acidentado, para desespero de seus admiradores, nesta época pobre de grandes atores e, pior, de vozes que convencem.
O cinema oferece a vantagem do script, elaborado e trabalhado pela respiração com a necessária cautela, o momento exato, a emoção sob medida. Temos poucos exemplos dessa arte cada vez mais complicada de se consumar, na medida em que o ruído ambiente aumenta e a cultura descartável se impõe como natural e eterna. Tanto é verdade que esses poucos são extremamente solicitados, como foi o caso por décadas do ator James Earl Jones, que fez a voz de Darth Wader, vilão de “Guerra nas Estrelas”, entre outros filmes.
Os americanos se defendem porque a locução dramática e profissional é uma escola antiga e atuante e sempre existe alguém que extrapola e fica na memória. No Brasil, os dois Paulos, o José e o César Peréio, dominaram o ofício por muito tempo, mas em geral somos pobres de grandes vozes. As exceções se rendem à ilusão de que são a própria divindade, o que é compreensível, dado o deserto em que vivemos. Qualquer voz que consiga clamar nele se sente, no mínimo, profeta.
Na música temos, para sempre, Dorival Caymmi. Achei excessivo o enfoque dado por ocasião da sua morte, ocorrida recentemente, de que ele era o bom baiano, folgazão, quase uma peça da comédia brasileira. Caymmi era extremamente dramático. Ele canta a pesca. Sua obra é um épico sobre a morte dos que lutam para sobreviver num ambiente hostil, o oceano, que atrai pela necessidade e seduz para uma armadilha mortal quando acena com o lazer em pleno expediente. O bem que o pescador tem no mar é uma ilusão, a substituição do trabalho pelo prazer.
A mulher que fica na espera da jangada enfrenta uma rival, Iemanjá, que rapta o pescador, exausto daquela tragédia. Voltar para quê? Melhor entregar-se nos braços do movimento feminino das ondas, que o leva para longe, para a doçura do afogamento, para fora das necessidades. Caymmi toma partido do pescador que morre pelo peixe, pelo pão. “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento. A jangada voltou só. Cadê você, cadê você?”
Sua Pasárgada é Maracangalha, uma utopia que transgride a vida doméstica e abraça o coletivo. É um desfile, um passeio, uma fuga, uma busca de convivência plural. Não se trata de gandaia pura e simples, como gostam de celebrar os atuais viciados no anacronismo. É uma convocação, um desejo imperioso de transcendência. Essa civilização de perdas precisa da superação, da celebração, do perdão para continuar em frente. O que chamam de conformismo, é na verdade o superlativo da perda, o sentimento do perdão. Pois é preciso voltar no dia seguinte, sem esquecer os que se foram.
A voz de Caymmi é um berço feito de alecrim num regato limpo, que nos leva para lá da rebentação. Com o passar do tempo será cada vez melhor, como todas as grandes vozes que nos embalam, confortam, alertam. Por isso as canções de Caymmi são sagradas. Elas são como capelas à beira mar, e sua obra, ditada por essa voz, compõe a imponência de uma catedral.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 26 de agosto de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagens de hoje: Morgan e Caymmi: o carisma de quem é eterno.
FILHO DE ANSELMO DUARTE ESCREVE PARA O DIÁRIO DA FONTE
Ricardo Duarte, filho de Anselmo Duarte, escreveu na seção de comentários do Diário da Fonte, a propósito do meu texto "Cinema novo, evolução e ruptura." Trocamos então correspondência publicamente e o resultado está a seguir:
"Meu nome é Ricardo. Ricardo Duarte. Filho de Anselmo Duarte. Meu pai vive comigo já há 4 anos. Administro a agenda social, inclusive entrevistas, do meu pai. Não é verdade que "não gosto" que abordem o fato de que ele "sofre" do "mal" de Alzheimer. Primeiro, ele não sofre coisa alguma. Segundo, Alzheimer não é um "mal". Alzheimer é um estado natural de deterioração celular do cérebro, que vai atingir você, a mim e a qualquer mortal, quando a Providência lhe prover de longevidade. Nã há porque esconder um fato natural. É triste ver uma pessoa que se ama e se sabe ter outrora brindado o mundo com brilhantismo e dignidade de ações relegado a um mundo de penumbra memorial. Nós, da família, vocês, que sabem, hoje, admirar seus feitos, suas conquistas para a cultura brasileira, sentimos uma dor , que só o vácuo da lembrança explica. Ele, o velho Anselmo, nunca foi tão feliz. Compartilho com ele, todos os dias, seu estado angelical de felicidade, honra existencial somente brindado por Deus a poucos eleitos. Anselmo Duarte já é um anjo, nem ele sabe disso. Anjos não sabem. Anjos são.
Só peço respeito e paciência. Os anjos são sempre capazes de nos surpreender com novos caminhos de luz. Anselmo vai continuar a nos surpreender com sua luz eterna, que lhe foi instilado em seu primeiro suspiro e não vai jamais se extinguir, nem com su último."
RICARDO DUARTE 08.25.08 - 4:31 am #
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Ricardo, admiramos Anselmo Duarte e em nenhum momento quisemos deixar de lado essa admiração. Não nos entenda mal. Feito seu reparo, só quero dizer o seguinte: a maneira como foi escrito não significa que estávamos faltando com o respeito, apenas abordando um tema delicado. Se te ofendeu, mil desculpas, não era essa a intenção.
nei 08.25.08 - 11:42 am #
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" Meu caro Nei. Seu texto não me ofendeu de nenhuma forma. Sei do seu carinho pelo meu pai. Achei apenas que devia expor meu ponto de vista quanto ao status quo do "Mal de Alzheimer" e esclarecer aos seus leitores que o Anselmão está feliz e gozando de plena saúde. Não é todo mundo que já conviveu com essa situação no seio da família e tenho observado que, não invariavelmente, as pessoas têm uma leitura equivocada, como se fora uma sentença de morte. Graças a Deus, não é. Frequento um grupo de apoio aos "cuidadores" de pessoas com a doença e percebo que cada caso é um caso. É olenamente possível conviver com a deterioração neuronal por muitos anos e, ao mesmo tempo, gozar de plena saúde. Contudo, é fato que algumas pessoas sucumbem rapidamente, afetando o quadro clínico geral e vêm a óbito. No caso do meu pai, seu estado, o da deterioração neuronal, está estabilizado já há 2 anos. Ele continua absolutamente independente e auto-suficiente em suas necessidades diárias de alimentação e higiene, graças a Deus.
Obrigado pelo carinho,
Ricardo
P.S.: parabéns pelo seu Blog. Sua aguçada percepção dos eventos do dia-a-dia brinda seus leitores uma reflexão bem humorada e inteligente, coisa rara hoje em dia."
RICARDO DUARTE Email 08.26.08 - 5:23 am #
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Ricardo, ganhei meu dia. Muito obrigado. E fico feliz que nosso grande e genial Anselmo Duarte, o cara que foi presença clara, luminosa, talentosa por toda minha infância e adolescência, quando aparecia com seu carisma e charme nas telas daqueles longes da fronteira, esteja gozando de plena saúde. Anselmo colocava a população em fila, que dava a volta na quadra, só para vê-lo. Longa vida ao eterno artista.
Só peço respeito e paciência. Os anjos são sempre capazes de nos surpreender com novos caminhos de luz. Anselmo vai continuar a nos surpreender com sua luz eterna, que lhe foi instilado em seu primeiro suspiro e não vai jamais se extinguir, nem com su último."
RICARDO DUARTE 08.25.08 - 4:31 am #
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Ricardo, admiramos Anselmo Duarte e em nenhum momento quisemos deixar de lado essa admiração. Não nos entenda mal. Feito seu reparo, só quero dizer o seguinte: a maneira como foi escrito não significa que estávamos faltando com o respeito, apenas abordando um tema delicado. Se te ofendeu, mil desculpas, não era essa a intenção.
nei 08.25.08 - 11:42 am #
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" Meu caro Nei. Seu texto não me ofendeu de nenhuma forma. Sei do seu carinho pelo meu pai. Achei apenas que devia expor meu ponto de vista quanto ao status quo do "Mal de Alzheimer" e esclarecer aos seus leitores que o Anselmão está feliz e gozando de plena saúde. Não é todo mundo que já conviveu com essa situação no seio da família e tenho observado que, não invariavelmente, as pessoas têm uma leitura equivocada, como se fora uma sentença de morte. Graças a Deus, não é. Frequento um grupo de apoio aos "cuidadores" de pessoas com a doença e percebo que cada caso é um caso. É olenamente possível conviver com a deterioração neuronal por muitos anos e, ao mesmo tempo, gozar de plena saúde. Contudo, é fato que algumas pessoas sucumbem rapidamente, afetando o quadro clínico geral e vêm a óbito. No caso do meu pai, seu estado, o da deterioração neuronal, está estabilizado já há 2 anos. Ele continua absolutamente independente e auto-suficiente em suas necessidades diárias de alimentação e higiene, graças a Deus.
Obrigado pelo carinho,
Ricardo
P.S.: parabéns pelo seu Blog. Sua aguçada percepção dos eventos do dia-a-dia brinda seus leitores uma reflexão bem humorada e inteligente, coisa rara hoje em dia."
RICARDO DUARTE Email 08.26.08 - 5:23 am #
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Ricardo, ganhei meu dia. Muito obrigado. E fico feliz que nosso grande e genial Anselmo Duarte, o cara que foi presença clara, luminosa, talentosa por toda minha infância e adolescência, quando aparecia com seu carisma e charme nas telas daqueles longes da fronteira, esteja gozando de plena saúde. Anselmo colocava a população em fila, que dava a volta na quadra, só para vê-lo. Longa vida ao eterno artista.
Nei Duclós
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