Nei Duclós
Por motivos misteriosos, não uso relógio de nenhuma espécie.
No fundo nunca precisei, graças aos relógios públicos, que sobravam por toda
parte. O Big Ben, de Londres, é o modelo de um hábito que estava disseminado nos
quatro cantos da esfera mundial. Da torre da igreja ao terminal de ônibus, da
sala de espera à estação de trem, sempre tínhamos condições de saber exatamente
o momento do dia ou da noite. Pois notei ultimamente que os relógios públicos estão
sumindo. Foram retirados de sua faina à mostra, explícito, incessante, gratuita.
Seria mesmo de graça? Relógio público dá despesa, mesmo
sendo digital. Vi como eles começaram a emperrar cada vez mais e finalmente a desaparecer,
pois a verba para sua manutenção deve ter ido embora nos ralos hoje
consolidados da corrupção institucionalizada. O desvio de dinheiro venceu e
qualquer serviço acaba sendo desmontado. Esse, o de fornecer as horas, era o
mais útil. Mas para que serve, devem raciocinar os irracionais, já “todo mundo”
sabe as horas depois do celular. Esquecem um detalhe: não uso celular.
Ok, exagerei, mas é verdade. Hoje, quando pergunto
ansiosamente as horas na rua (pois em casa disponho de um digital acoplado à
geladeira!) preciso esperar que a pessoa abra a bolsa e procure no fundo o
aparelho que lhe fornecerá a medida do tempo para então me repassar. Aguardo o
favor enquanto o ônibus especial que eu queria pegar passa célere, já que me distraí consultando o tempo. Se você não acena desesperado no tempo e no
lugar certo, o motorista te ignora.
Com o fim do relógio tradicional, some a nobre profissão de
mestre relojoeiro, hoje confinado à arte mais escondida, uma espécie de ourives
da memória. Vistos a distância, pareciam mesmo jóias em que se dava corda e se
colocava no ouvido para usufruir do tic tac. Tive alguns desses nos primeiros
anos. Dava um ar de maturidade ao prego posudo, que dispunha assim de gestos
reservados aos adultos. Como se, guris, precisássemos das horas, já que tudo
estava resolvido,desde o instante de entrar em aula, os recreios e a saída, até
as sessões matinais e vespertinas de cinema. Sabíamos de cor, estávamos
impregnados do tempo, que fazia parte de nós.
Havia, claro, os insurgentes. Um dos meus irmãos costumava
levantar da cama só quando o sino do colégio em frente dava as primeiras
badaladas. Como a escola permitia cinco minutos de margem para os retardatários,
esse era o tempo de por a roupa, pegar os livros e chegar na aula com a cara
lambida de quem acaba de acordar, provocando o olhar fuzil do professor que não
se conformava com a folga. Outro irmão meu reclamou quando recebeu seu primeiro
relógio de presente. No lugar dos números, estavam aqueles traços que os
substituíam. Quero um relógio com números brasileiros, disse ele.
Imagino que o tempo, que pela primeira vez foi privatizado por necessidade técnica, quando um famoso relojoeiro francês inventou o relógio de pulso para Santos Dumont navegar o mais pesado do que o ar, foi agora totalmente sequestrado e nem pedem
resgate. Colocaram o velho piloto num hangar perdido no deserto sem pão nem água. Ele que
dominou o mundo com carrilhões e famas como a dos trens que partiam às 17 horas
e dois minutos e meio, pontualmente, agora vazava sem parar como ampulheta sem que ninguém fosse lá virá-lo para continuar marcando as horas. O
tempo, nosso contemporâneo, também dançou e hoje fica prisioneiro de luzinhas
eletrônicas, que nos falham miseravelmente quando vai-se a energia da usina ou
da pilha.
Os relógios analógicos, com seus tic tacs, marcavam não
apenas o tempo, mas a idade em que vivíamos, a da glória suprema de pertencer a
um mundo que tinha ordenado o caos. Havia algo de sagrado nesse farol que
regulava a eternidade, quando todos se reportavam ao seu poder. Mas aconteceu o
pior. O caos tomou conta, e começou a retirar os relógios das igrejas e estações,
mantendo alguns só como lembrança. Vivemos ermos do tempo, escravos de algo que
tomou o seu lugar, um clone sinistro privatizado. Um tempo não compartilhado
publicamente e que é transmitido meio de má vontade, já que “todo mundo” tem
como ver as horas. Só tu, náufrago do destino, que não.