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1 de maio de 2013

O SEQUESTRO DO TEMPO




Nei Duclós

Por motivos misteriosos, não uso relógio de nenhuma espécie. No fundo nunca precisei, graças aos relógios públicos, que sobravam por toda parte. O Big Ben, de Londres, é o modelo de um hábito que estava disseminado nos quatro cantos da esfera mundial. Da torre da igreja ao terminal de ônibus, da sala de espera à estação de trem, sempre tínhamos condições de saber exatamente o momento do dia ou da noite. Pois notei ultimamente que os relógios públicos estão sumindo. Foram retirados de sua faina à mostra, explícito, incessante, gratuita.

Seria mesmo de graça? Relógio público dá despesa, mesmo sendo digital. Vi como eles começaram a emperrar cada vez mais e finalmente a desaparecer, pois a verba para sua manutenção deve ter ido embora nos ralos hoje consolidados da corrupção institucionalizada. O desvio de dinheiro venceu e qualquer serviço acaba sendo desmontado. Esse, o de fornecer as horas, era o mais útil. Mas para que serve, devem raciocinar os irracionais, já “todo mundo” sabe as horas depois do celular. Esquecem um detalhe: não uso celular.

Ok, exagerei, mas é verdade. Hoje, quando pergunto ansiosamente as horas na rua (pois em casa disponho de um digital acoplado à geladeira!) preciso esperar que a pessoa abra a bolsa e procure no fundo o aparelho que lhe fornecerá a medida do tempo para então me repassar. Aguardo o favor enquanto o ônibus especial que eu queria pegar passa célere, já que me distraí consultando o tempo. Se você não acena desesperado no tempo e no lugar certo, o motorista te ignora.

Com o fim do relógio tradicional, some a nobre profissão de mestre relojoeiro, hoje confinado à arte mais escondida, uma espécie de ourives da memória. Vistos a distância, pareciam mesmo jóias em que se dava corda e se colocava no ouvido para usufruir do tic tac. Tive alguns desses nos primeiros anos. Dava um ar de maturidade ao prego posudo, que dispunha assim de gestos reservados aos adultos. Como se, guris, precisássemos das horas, já que tudo estava resolvido,desde o instante de entrar em aula, os recreios e a saída, até as sessões matinais e vespertinas de cinema. Sabíamos de cor, estávamos impregnados do tempo, que fazia parte de nós.

Havia, claro, os insurgentes. Um dos meus irmãos costumava levantar da cama só quando o sino do colégio em frente dava as primeiras badaladas. Como a escola permitia cinco minutos de margem para os retardatários, esse era o tempo de por a roupa, pegar os livros e chegar na aula com a cara lambida de quem acaba de acordar, provocando o olhar fuzil do professor que não se conformava com a folga. Outro irmão meu reclamou quando recebeu seu primeiro relógio de presente. No lugar dos números, estavam aqueles traços que os substituíam. Quero um relógio com números brasileiros, disse ele.

Imagino que o tempo, que pela primeira vez foi privatizado por necessidade técnica, quando um famoso relojoeiro francês inventou o relógio de pulso para Santos Dumont navegar o mais pesado do que o ar, foi agora totalmente sequestrado e nem pedem resgate. Colocaram o velho piloto num hangar perdido no deserto sem pão nem água. Ele que dominou o mundo com carrilhões e famas como a dos trens que partiam às 17 horas e dois minutos e meio, pontualmente, agora vazava sem parar como ampulheta sem que ninguém fosse lá virá-lo para continuar marcando as horas. O tempo, nosso contemporâneo, também dançou e hoje fica prisioneiro de luzinhas eletrônicas, que nos falham miseravelmente quando vai-se a energia da usina ou da pilha.

Os relógios analógicos, com seus tic tacs, marcavam não apenas o tempo, mas a idade em que vivíamos, a da glória suprema de pertencer a um mundo que tinha ordenado o caos. Havia algo de sagrado nesse farol que regulava a eternidade, quando todos se reportavam ao seu poder. Mas aconteceu o pior. O caos tomou conta, e começou a retirar os relógios das igrejas e estações, mantendo alguns só como lembrança. Vivemos ermos do tempo, escravos de algo que tomou o seu lugar, um clone sinistro privatizado. Um tempo não compartilhado publicamente e que é transmitido meio de má vontade, já que “todo mundo” tem como ver as horas. Só tu, náufrago do destino, que não.