1 de janeiro de 2013

SOBRE A VIDA DE PI



Nei Duclós

Vida é o que você inventa
naufrágio no mar aberto
Um tigre domina o barco
A tempestade desperta

O que nos morde é a fera
ou quem distorce a história?
Parábola no deserto
escola que mata cedo

O amor foge para a selva
o coração pede água
a salvo o tempo retorce
toda lisura da esfera

Ilhas que não existem,
zoológico de mistério
o mundo é espaço vazio
nos intervalos do verbo

Vida é obra de arte
imagens jogadas fora
escuto o sonho na fome
acordo a sede na espera


Uma narrativa fantástica precisa enfrentar o ceticismo na fonte, sob pena de repassar para quem ouve ou lê as perguntas naturais diante da imaginação. A desconfiança deve fazer parte da história para que o leitor não se adiante nela (ou, se isso acontecer, não permaneça na obviedade da falta de fé). É uma maneira eficiente de imobilizar a descrença do público. O recurso é consagrado no Quixote, quando Sancho Pança é o interlocutor cético do narrador cheio de fumaças.

Em A Vida de Pi, de Ang Lee (2012), o narrador inventa interlocutores desconfiados, que são os emissários da empresa do navio que afundou. É a maneira de dobrar o interlocutor que interessa, o escritor que escuta a narrativa para transformá-la em livro. Confrontado com as duas versões, uma que parece mentira e a outra cheia de verossimilhança, o escritor escolhe a imaginação. Mas ele descobre que a situação pretensamente inventada – a do garoto que naufraga junto com um tigre da Bengala – é reconhecida oficialmente, com papel timbrado, pela empresa proprietária do navio.

Era ele, o escritor, o alvo do narrador oral, que assim prepara os futuros leitores para suas memórias . Se não fizesse isso, correria o risco de ser desacreditado. O cineasta Ang Lee faz da narrativa assombrosa sua matéria prima visual, já que a chamada realidade – a besta fera que não tem nada no seu interior – não pode fazer parte de uma arte sofisticada a não ser como contraponto. O fantástico é a transcendência, o chamado real é datado.

Para que as memórias do narrador não fiquem confinados a uma decadência migratória, é preciso que a travessia no inferno salgado seja pontuada pela impossibilidade de uma natureza selvagem sendo domada pela necessidade de sobrevivência e pela crença de que algo há além da ferocidade.

O garoto que tem nome de batismo de piscina, vê-se no infinito do oceano frente a frente com seus demônios. Sozinho, sem a família, a pátria ou os amigos. Rito de passagem para a vida adulta, em que não há garantia de sobrevivência nem de final feliz.

Bom filme.