Nei Duclós
Era crucial, para a paz com os estados do Sul, depois de
longa carnificina que matou 600 mil pessoas na década de 1860, aprovar a 13ª
Emenda da Constituição americana, a que proibia a servidão exceto para
criminosos condenados, em todo território da nação e em lugares sob sua
jurisdição. Daniel Day Lewis, no papel de Lincoln, no filme dirigido por Steven
Spielberg e roteiro de Toni Kushner, explica para seus aliados o motivo desse
foco: sem a escravidão, os proprietários do sul, com a paz, não poderia
revindicar a posse de seu antigo patrimônio, os escravos. E se ela se
mantivesse, a União não poderia interferir nessa reivindicação, que ainda
estava assegurada por lei. Fim da escravidão, a paz poderia ser negociada com
imensa vantagem.
Ninguém entendia a pressa do presidente na votação. Todos
achavam que a guerra estava ganha e era preciso apenas assinar a paz. Mas
Lincoln via na frente. Ele já tinha
declarado livres os escravos que lutavam ao seu lado naquela guerra, mas era
apenas uma espécie de medida provisória, que não tinha força de lei permanente.
Era um privilégio do estadista em tempos de guerra. Ele podia fazer enquanto o
conflito existisse. Com o armistício, esses privilégios desapareceriam. A não
ser que fosse aprovada a emenda.
Spielberg, um artista contemporâneo que se contrapõe à
imensa quantidade de medíocres que pululam em todos os nichos, nos mostra didaticamente
como foi urgente, dramática, suja, violenta essa votação, com seus antecedentes
brutais. Sim, houve suborno. Um número determinado de democratas, que em
principio se opunham à emenda (os republicanos fechavam cem por cento com o
presidente) poderia garantir a vitória. Esse grupo tinha perdido as eleições e
se encontrava em fim de mandato. Lincoln mandou dois lobistas (com perdão do
anacronismo) distribuir cargos na futura legislação, já que houvera reeleição. “Tenho
imenso poder, consigam esses votos”, disse o presidente, num acesso de fúria, a
toda sua equipe.
O filme é de bastidores da política. Lento, denso,
brilhante, sem concessões a bons sentimentos, mas fiel ao espírito de justiça e
à ética necessária para manter a nação de pé. Pragmatismo político aliado ao
carisma de um predestinado. Os tetos baixos, as posições a cavaleiro sobre os
interlocutores, a espinha curvada, a cartola alta fazem da postura do personagem
principal um gigante entre anões, um escolhido entre os desiguais. “Não
acredito em igualdade de todas as coisas e pessoas”, diz o deputado interpretado
por Tommy Lee Jones, “mas em igualdade perante a lei”. Esse era o ponto.
Driblava o argumento racista de que a emenda colocava brancos e negros como
seres iguais, já que ela cuidava da isonomia legal.
Além de Lewis e Jones, Sally Field, no papel da sra. Lincoln,
merece Oscar. A perda do filho, o medo que o primogênito se alistasse (o que
acaba acontecendo), a dor, o luto, as dificuldades pontuam os diálogos da
mulher que se sentia comum ao lado de alguém especial. Uma dramaturgia poderosa
que faz deste filme um clássico sobre o drama humano da política, em que o envelhecimento
rápido do líder declara a guerra do tempo contra uma criatura que consegue
alcançar a eternidade.
Cineasta de primeira linha, entre os melhores da nossa
época, Spielberg se dedica à costura do imaginário da nação, como fizeram os
cineastas importantes da América, como John Ford e Frank Capra. É emocionante
compartilhar essa obra que possui o tom de um livro que se lê para conhecer um
pouco da História que gerou nossa época. Exemplo para nós, que costumamos
desprezar nossos personagens e guerras, sem atentar para a importância de
refletir, na Sétima Arte, o espírito da nação, fonte de inspiração da
cidadania.
Temos pelo que lutar, um país. Isso é que Spielberg mostra
neste filme , desde já, inesquecível.