Nei Duclós
Vida é o que você inventa
naufrágio no mar aberto
Um tigre domina o barco
A tempestade desperta
O que nos morde é a fera
ou quem distorce a história?
Parábola no deserto
escola que mata cedo
O amor foge para a selva
o coração pede água
a salvo o tempo retorce
toda lisura da esfera
Ilhas que não existem,
zoológico de mistério
o mundo é espaço vazio
nos intervalos do verbo
Vida é obra de arte
imagens jogadas fora
escuto o sonho na fome
acordo a sede na espera
Uma narrativa fantástica precisa enfrentar o ceticismo na
fonte, sob pena de repassar para quem ouve ou lê as perguntas naturais diante
da imaginação. A desconfiança deve fazer parte da história para que o leitor
não se adiante nela (ou, se isso acontecer, não permaneça na obviedade da falta
de fé). É uma maneira eficiente de imobilizar a descrença do público. O recurso
é consagrado no Quixote, quando Sancho Pança é o interlocutor cético do
narrador cheio de fumaças.
Em A Vida de Pi, de Ang Lee (2012), o narrador inventa
interlocutores desconfiados, que são os emissários da empresa do navio que
afundou. É a maneira de dobrar o interlocutor que interessa, o escritor que
escuta a narrativa para transformá-la em livro. Confrontado com as duas
versões, uma que parece mentira e a outra cheia de verossimilhança, o escritor
escolhe a imaginação. Mas ele descobre que a situação pretensamente inventada –
a do garoto que naufraga junto com um tigre da Bengala – é reconhecida oficialmente,
com papel timbrado, pela empresa proprietária do navio.
Era ele, o escritor, o alvo do narrador oral, que assim
prepara os futuros leitores para suas memórias . Se não fizesse isso, correria
o risco de ser desacreditado. O cineasta Ang Lee faz da narrativa assombrosa
sua matéria prima visual, já que a chamada realidade – a besta fera que não tem
nada no seu interior – não pode fazer parte de uma arte sofisticada a não ser
como contraponto. O fantástico é a transcendência, o chamado real é datado.
Para que as memórias do narrador não fiquem confinados a uma
decadência migratória, é preciso que a travessia no inferno salgado seja
pontuada pela impossibilidade de uma natureza selvagem sendo domada pela
necessidade de sobrevivência e pela crença de que algo há além da ferocidade.
O garoto que tem nome de batismo de piscina, vê-se no
infinito do oceano frente a frente com seus demônios. Sozinho, sem a família, a
pátria ou os amigos. Rito de passagem para a vida adulta, em que não há
garantia de sobrevivência nem de final feliz.
Bom filme.