26 de janeiro de 2013

CONSCIÊNCIA E JUSTIÇA EM OS MISERÁVEIS



Nei Duclós

A predestinação define a vida de cada um. Quem nasce para o crime, nele permanecerá e quem encarna a Justiça dela não se afasta. A oposição entre o ladrão Jean Valjean (Hugh Jackman), que tenta a remissão, e o comissário de polícia Javert (Russell Crowe) que não acredita na sua recuperação, costura o musical Les Miserables (2012), história filmada pela enésima vez e aqui transposta de um espetáculo da Broadway. O diretor Tom Hooper e os roteiristas Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil montaram uma narrativa de 158 minutos  aproveitando filmes anteriores, que já tinham conseguido formatar para o cinema o catatau de Victor Hugo (1.372 pgs.), publicado em 1884. Todos conhecem a história, mas o que pega nesta versão é a remissão e o pecado por meio do mergulho na consciência, mãe da Justiça.

O debate por meio de monólogos cantados é um duelo entre a descoberta do ladrão de que havia uma chance de se salvar, e a derrota do policial que não consegue fazer da lei a palavra final sobre a natureza humana. O conflito é pessoal, mas está vinculado miseravelmente à situação social. Assim como Michelet inventou a revolução francesa 40 anos depois de ela ter ocorrido, uma pesquisa feita em plena restauração monárquica, também Victor Hugo foi buscar na revolta derrotada de Junho de 1832 o ambiente de confronto entre a liberdade e opressão. Neste momento, ao contrário da Revolução vitoriosa de 1789, a mocidade armada enfrenta os canhões nas barricadas, mas a população se recolhe e todos devem morrer.

O que triunfa é o mito recorrente do povo que se liberta, ou por meio do sonho ou pela luta que sangra como exemplo. Lugar comum de uma literatura revolucionária, mas que no super espetáculo deste filme britânico ganha contornos emocionantes, apesar de inúmeros equívocos. Um deles é insistir sempre no diálogo cantado quando em várias passagens caberia tranquilamente a fala normal, sem melodia, como acontece em West Side Story. Insistir em ser tudo feito no gogó (ok, é uma ópera) força a situação a toda hora. Outro inconveniente é a obviedade das letras, com rimas fáceis (o inglês que eu entendo não pode ser bom). E há exageros de dramalhão especialmente quando Anne Hattaway (que virou um fiapo neste filme, queriam matá-la?) lamenta a morte do amor quando sofre a barbárie da prostituição.

Mas o filme se impõe, apesar de tudo. Confesso que quis desistir no meio, mas foi bom seguir em frente, cruzar o umbral das várias fases da História, em que o ladrão que se redime muda de identidade sempre e se pergunta quem é ele, afinal de contas, só encontrando pouso na morte. Não há lugar para a transformação humana neste mundo datado e definido como imutável. O paraíso, a promessa e a chance inoculadas pela fé são as saídas para o sonho que esbarra na traição, na calúnia, na brutalidade, na opressão, na tirania. Quem é a indústria do espetáculo para falar nisso? Desconfiamos do filme over, mas o que vale é o talento.

No geral implico com filmes de época, pois acredito que não se fabricam mais biotipos que encarnem de verdade séculos anteriores. Fica tudo parecendo um show de rock, inclusive com os cabelinhos e os esgoelamentos.  A meninada se esforça mas não convence. Ficamos com alguns protagonistas, como os dois principais, que tiram leite de pedra, apesar do entorno fake.  Cada vez temos menos atores como Russel Crowe, com carisma suficiente para mostrar um vilão contraditório com problemas de consciência. Mas ainda há.

O forte das músicas são as canções cantadas coletivamente. A da prisão e da miséria e as revolucionárias. O resto parece feito a fórceps para caberem na história. Implicâncias minhas, mas o filme vale. Confesso que fiquei emocionado em muitos momentos e achei o trabalho todo admirável.


RETORNO - Imagem desta edição: Russel Crowe, soberbo como Javert.