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19 de setembro de 2009
RAYMUNDO FAORO E O ANACRONISMO: TRÊS ENSAIOS EXEMPLARES
Nei Duclós
Anacronismo é a palavra chave dos três ensaios de Raymundo Faoro, enfeixados num só volume publicado pela Atica em 1994 e que leva o título de um deles Existe um pensamento político brasileiro? Neste texto principal, o Mestre analisa a osmose entre Portugal e Brasil nas ações do poder, consolidadas num acervo pragmático de princípios que se adaptam às circunstâncias. O segundo é A Modernização Nacional, onde aborda as diferenças entre modernidade, a evolução social equilibrada e dentro de um cronograma "natural", e a modernização, que são as intervenções feitas aos arranques, na base do fórceps e que deixam um rastro de ruinas. E o terceiro é A Ponte Suspensa, sobre a a natureza e a influência na vida brasileira da biografia que Joaquim Nabuco fez sobre seu pai, "Um estadista no Império", lançado no final do século 19.
Anacronismo vem do grego e significa "contra o tempo". No caso dos ensaios citados, é a sobrevivência de esquemas ultrapassados no presente como fonte das tragédias nacionais. O que deveria estar morto e enterrado continua dando as cartas, pois o poder não se transforma com as pressões da realidade, antes faz concessões para se manter intacto. Isso provoca um círculo vicioso, um tempo cíclico que volta sempre ao ponto de partida, sem jamais ir em frente, amarrando o país a anacronismos e asfixiando a evolução social. Como acontece esse fenômeno, na visão de Faoro? Por meio do pensamento político, que é uma praxis, é a própria política, diferente da filosofia política.
Por exemplo, o liberalismo. Faoro coloca o paradigma inglês e americano em oposição à gestão do Marquês de Pombal, no final do século 18, que, aproveitando o grande terremoto em Lisboa, desengessou Portugal do Absolutismo sem abrir mão dele. No lugar da livrre circulação das idéias e da desenvoltura dos atores sociais por meio da representação e da ação, tivemos a continuidade do realismo, constitucional só na aparência, com a prevalência do Rei sobre as Cortes, que existiam pró-forma e poucas vezes eram convocadas - e quando isso acontecia, era para reafirmar a vopntade do trono. O processo se intensificou até a ruptura na Revolução do Porto em 1820, em que Portugal, inconformado com a transferência do Reino para o Brasil, exigiu a volta de suas prerrogativas.
O pensamento político que se desenvolveu nesse período, segundo Faoro, acabou marcando definitivamente o pensamento político nos dois lados do Atlântico. A partir dessa situação, começaram a conviver dois tipos de forças: o liberalismo consentido e orgânico do Rei e seus áulicos, e um liberalismo subeterrâneo, potencial, que jamais se impôs e que a toda hora ressurge com grande poder de desarticulação, obrigando o poder a rearrumar a casa para continuar imperando. Essa pulsação doentia do projeto político fracassado, alimentado pelas circunstâncias reais, confronta ciciclamente a artimanha oficial e faz com que o país continue marcando passo, sem jamais chegar a um desenlace.
Essa visão pessimista do Brasil, de uma obra que não reconhece aqui a existência de um verdadeiro capitalismo, quando nem temos uma sociedade de classes clássica, já que o topo da pirâmide é ocupada sempre pelo estamento político e burocrático, tem grande margem de acerto, apesar de ser contestada por outras correntes do pensamento brasileiro. Os marxistas não toleram esse foco weberiano da análise de Faoro, já que eles acreditam na sociedade de classes tradicional e acham até que a Revolução de 30 foi uma "revolução burguesa" e que os operários e camponeses, como aconteceu na Rússia, deveriam tomar o poder. Mas o que vimos com Lula, num processo posterior à divulgação da tese de Faoro, é que o pretenso operário virou parte do estamento e tudo continuou como antes.
Vejo o seguinte furo: Faoro faz tabula rasa da Era Vargas, colocando-a ao lado, em sintonia com sua demolição, 1964. Não poderia haver relação em 1930 e 1964, ou entre 1937 e 64, como sustenta Faoro, já que 37 foi a implantação de uma economia que viabilizou o país soberano (vitória colhida mais tarde por JK) enquanto 64 foi exatamente o contrário. Ambos se parecem pelas intervenções do Estado, mas os objetivos se apartam radicalmente. Mas essa é a visão que tenho hoje, lendo o mestre e sua brilhante análise do pensamento político brasileiro.
O segundo ensaio do livro, ou Segunda Parte, "A Modernização Nacional", aprofunda o mesmo tom de lamento. Nossa modernização é a anti-modernidade. Ou seja, as intervenções estatais para queimar etapas e fazer do Brasil uma nação desenvolvida, como quis Vargas e JK, ou uma potência, como quiseram os militares em 1964, acaba gerando insegurança e ruina por não se sustentar em bases sólidas. São fases que sofrem de ultrapassagem permanente do tempo, como aconteceu nos planos econômicos da chamada Nova República na época de Sarney, citados por Faoro como exempolo desses arranques perniciosos (outro foi a implantação do sistema ferroviário no tempo do Império e outro o Encilhamento, a grande festa financiera da Primeira República). No lugar de gerar o que se chama hoje de desenvolvimento sustentável (que não era moda quando o livro foi escrito), opta-se pelas mágicas salvadoras. Vemos isso na atual febre do pré-sal, panacéia para todos os nossos pronblemas.
Na Terceira Parte, "A Ponte Suspensa", Faoro coloca o livro de Nabuco sobre seu pai como exemplo dessa falta de sintonia entre uma base podre e uma supperestrutura equivocada. No caso, o perfil dos estadistas de inspiração francesa, como Nabuco e o pai, e que reforçam a necessidade de um poder sem povo, mas de aparência moderna. Resgatar a permanência das atitudes e pensamentos do Segundo Império, como faz Nabuco, tanto nessa biografia quanto no seu clássico "O Abolicionismo", segundo Faoro, acaba infletindo sobre o pensamento político da República. O anacronismo é o alerta de Faoro, ao explicar que a excelência do estilo esconde no fundo um projeto de poder que pretende se manter eternamente assentado sob mesmas colunas do passado.
Essa é a síntese, a vôo de pássaro, que faço dessa leitura gratificante do Mestre Raymundo Faoro, que sempre nos torna melhores quando o lemos. Ele nos desperta e, muitas vezes, nos obriga a contestá-lo, não porque tenha dito algo sem consistência, mas porque sua argumentação sólida e brilhante pode nos contrariar, e revidar é sempre um esforço que contribui para a auto-superação. Somos nós, cidadãos brasileiros, estudantes diante dos Mestres: assim , aprendemos a lidar com a produção de pensamento.
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