3 de setembro de 2009

JOGO FORA DO JOGO



Nei Duclós

A Argentina já está exercendo sua especialidade: jogar fora do jogo, ganhar a partida sem que ninguém entre em campo. Usa o velho expediente de que estamos com medo deles. O argentino, no futebol, é aquele vizinho que caminha apressadinho de cabeça erguida e nariz empinado e vive puxando briga na esquina para provar que é o melhor, quando não passa de arraia miúda. Perdem quase tudo, como provam as sucessivas goleadas que levam a toda hora (estão lá embaixo da tabela), mas quando ganham celebram como se jamais tivessem perdido. Pior: como se jamais os outros tivessem o direito de ganhar. Com o Maradona no comando, o sujeito que colocou boleta na água para dopar os jogadores brasileiros na copa de 90, como admitiu às gargalhadas publicamente, o expediente maroto fica ainda mais explícito.

Maradona usa o argumento de que eles tem melhores jogadores, o que é uma meia verdade, tanto pelo fato em si como pela estratégia. Temos excelentes jogadores, alguns excepcionais, como Kaká e Robinho, mas estamos ermos de diferenciais como os dois Ronaldos, um machucado e outro caído em desgraça. Um cracaço dinamiza os esquemas de jogo, cria surpresas, pode decidir num impulso. Sem eles, fica tudo igual, como temos visto nos últimos jogos do brasileirão. Nem adianta ter bons jogadores quando os esquemas são hegemônicos e falta margem para o futebol de verdade. Depois do sono absoluto do zero a zero entre São Paulo e Palmeiras na semana passada, veio um mais ou menos Santos e Corinthians ontem, quando o timão venceu por dois a um.

Vejo assim, eu que enxergo pouco, especialmente na televisão aberta com antena interna e sem acompanhar direito o noticiário esportivo: o futebol está na mão de esquemas rígidos, que poucos treinadores dominam e é por isso, por essa escassez de quadros especializados em repetir o Mesmo, que os de sempre fazem rodízio. Não fosse desse jeito, haveria mais diversidade. Vejam como foi difícil Andrade, do Flamengo, entrar na roda. Acredito que não se trata de máfia nem nada, mas sim das limitações impostas pelo tipo de jogo adotado, em que a ciência dos ângulos, retas, bissetrizes e paralepípedos substituíram o arranque pela direita de Garrincha, os dribles sucessivos de Pelé e até mesmo o gol Mandrake na Inglaterra pelo Ronaldinho Gaúcho na Copa de 2002, em que a bola ascendeu à divindade e depois se precipitou como um cometa para a glória.

A camisa-de-força fica evidente quando vemos os gols do Santos e Corintians. Foram triangulações super ensaiadas, desenvolvimentos rígidos de esquemas pré-determinados, em que a bola obedece os pés treinados na mesmice e quica miseravelmente na hora agá, pois não é possível planejar tudo com os mínimos detalhes. Chega uma hora em que o esquema arruína e o negócio é entrar com bola e tudo, refazer-se do susto de a trave ter entrado no lance e encher o pé de maneira meio tosca e covardemente em cima do goleiro batido.

A cabeçada final para dentro do arco também faz parte do esquema e tem sido o desfecho natural das planilhas exaustivamente implantadas nos treinos. Do centro para o canto, do canto para o centro mais na frente e cabeceio, pimba, gol . Não vejo mais o craque estudar a barreira adversária, passar de um pé para outro, como se fosse dois jogadores num só, torcer o corpo ao contrário da sua aparente intenção, se infiltrar pelo meio de três atacantes sem simular falta nem bater em ninguém, colocar a bola fora do alcance até dele mesmo e com uma nesga de pé bater de refilão na criança, para que ela evolua como porta estandarte livre da lei da gravidade e acabe roçando a rede, como corça abusada tirando um toco da juba do leão.

Isso não se vê mais. O que se vê é essa sucessão de passes mecânicos, em que basta uma retranca qualquer para tornar o jogo uma joça, e os jogadores se dando encontrões para que as jogadas obedeçam ao esquema pré-determinado. Parece futebol americano, com os caras se trompeando a toda hora. Anteontem, um garoto de 24 anos, ex-jogador do Grêmio, morreu de ataque cardíaco numa pelada. Além do problema congênito, deve ter tido aulas de como obedecer rigidamente os técnicos que vivem em rodízio pelos times e a eliminar os adversários de maneira desleal.

Talvez, se fosse estimulado no futebol profissional o encanto que as torcidas desesperadamente procuram e não encontram, estaria ainda vivo. Enquanto isso, as platéias urram diante de seus times, esperando que a graça não apenas da vitória, mas da jogada perfeita improvisada em campo, arraste nossos corações para dentro da área, lá onde a coruja pia e onde os espíritos livres exercem sua ração de grandeza nesta vida sem lei e sem alma.

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