24 de setembro de 2009

A LEBRE, A COBRA E A POMBA


Bola, por natureza, é lebre: quica, pula, salta, escapa, sobra. Os jogadores que se virem. Eles precisam colocá-la nos eixos, defini-la como cobra, como aconteceu nesta quarta-feira, no Mineirão, quando o palmeirense Cleiton Xavier rasga o gramado com um rastejar fulminante , que se enrodilha nos pés de Wagner Love lá longe, livre no meio e em direção impiedosa rumo ao gol do Cruzeiro. No lugar do bote, essa serpente manipulada pelo craque avança até o goleiro para atraí-lo.

O engano é percebido tarde demais. O arqueiro acredita que vai chegar antes, mas é driblado pelo atacante, que cruza então para o fundo da rede. É um lance diferente do primeiro gol do Palmeiras, quando a bola serpenteia no topo da barreira, impulsionada pelo efeito do pé de Diego Souza e obedecendo aos caprichos de um vento lunar próprio, gerado não se sabe onde. Essa bola que acaba indo no canto oposto à expectativa do goleiro é uma pomba destrambelhada no vôo.

São os diversos personagens assumidos pela bola na pedreira, uma boa parte dela abaixo de chuva. Criações de serpentes agulham a linha de fundo nos ataques simultâneos dos dois lados. Lebres se agigantam na área fazendo quicar a surpresa na frente do gol. E pombas lançadas a esmo varrem o estádio por cima do travessão. É como se bola obedecesse a uma narrativa singular, planejada antes que os jogadores entrassem em campo. Ela decide, junto com a geometria do gramado, o que fará naquela noite, para divertimento da platéia.

Não que os contendores não saibam dominá-la, ao contrário. Mas se os dois times se igualam no mesmo tipo de sufoco e pressão, quando o carrinho (a serpente que morde) rompe o tornozelo da lebre e as pombas se jogam assustadas para cima dos goleiros indefesos, a bola assume o lugar do protagonista do jogo, deixando como coadjuvantes todo o resto, Muricy inclusive, desesperado para que tudo acabe de uma vez e os 2 x 1 sacramente a liderança do Palmeiras, como de fato aconteceu.

Faltou falar do gol do Cruzeiro, que até a metade foi parecido com o lançamento de Cleiton Xavier, mas sem Wagner Love, pois Thiago Ribeiro, recebendo uma bola da estrela potencial do jogo, que não se consumou, Kleber, chutou abrindo o placar. Foi uma cobra, à vontade para penetrar a cidadela adversária nos minutos iniciais do confronto, quando os envolvidos ainda estavam curtindo o nervosismo de uma “meia-decisão” do campeonato, como foi definido pelos locutores esportivos que fizeram a cobertura.

Quando os dois times se equivalem, os espaços nobres do gramado estão ocupados. Resta então aqueles cantos esquecidos, as laterais quase fora dos muros, os nichos sem importância para gols imediatos. É ali nesses lugares abandonados que se travam as piores disputas. Quando tropeçam, cotovelos assomam, sangue jorra, tombos inventados se desmancham. Uma tripa muito fina de gramado junto à lateral pode ser a salvação de um cruzador habilidoso, que coloca a bola no miolo do drama, como aconteceu várias vezes nesta peleja.

Não digam que um observador sem time é isento quando vê futebol. É como voluntário em Legião Estrangeira. A guerra não é nossa, mas estamos prontos para entrar em combate. As regras proíbem que a gente entre em campo. Mas toda vez que um desenlace se desenha, o anônimo torcedor assume uma persona. É assim como a bola. Às vezes nossa atenção quica sem parar de um lado para outro. De repente, nosso olhar cruza o meio de campo como se estivesse amarrando a presa. E então tudo voa em direção às redes como um barulho de asas. É quando vemos o goleirão Marcos se atirar inteiro, apostando na sorte. Mas é que seu corpo sabe onde a bola vai bater e não há bicho que o engane, o caçador veterano.

Diante de Marcos, a bola encharcada se recolhe. O goleiro é a gaiola dos bichos soltos do futebol, esse exercício que só pode ser praticado pelos espíritos livres.

RETORNO - Temos governo: "É preciso que haja respeito pela situação e que ele não faça da embaixada uma base política, eleitoral, ou coisa que o valha. Ele está lá na condição de abrigado, não é exilado." José Alencar, presidente em exercício, sobre Manuel Zelaya.

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