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5 de setembro de 2009
ORIGENS DA MÃE GENTIL
Nei Duclós
Versos e frases célebres dos poetas e prosadores românticos da literatura brasileira foram incorporados aos nossos hinos. No Hino Nacional, trecho da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, está grafado entre aspas. É o que fala dos campo (várzeas, no poema) com mais flores, bosques com mais vida e vida com mais amores. No Hino do Expedicionário, outro verso da canção de Gonçalves Dias, escrita no século 19, está na letra do poeta Guilherme de Almeida (o mesmo da Revolução paulista de 1932), que é “não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá”. Nesse caso, não está entre aspas. E “verdes mares bravios” da minha terra natal, também do hino da FEB, veio de Iracema, de José de Alencar. Há mais.
A figura da mulher como um cisne branco, metáfora principal do Hino da Marinha, veio de um soneto e de uma elegia de Fagundes Varela (os americanos tratam seus navios de “ela). Entre a mãe gentil e a mulher amorosa, a pátria é representada nos autores românticos e essa representação é incorporada nos símbolos nacionais. Qual outro movimento teve essa importância? Nenhum, porque exatamente não quiseram. No fundo, todos os outros - simbolismo, parnasianismo, modernismo - são uma insurgência contra o romantismo. Romper com a ingenuidade é o objetivo das rupturas, que preferem algo mais cru (ou verdadeiro), tanto para as letras quanto para a nação.
Mas o problema não é a verdade, é a versão. Você não lida com símbolos dizendo “verdades”, mas criando versões. Elas mudam ao longo do tempo, até mesmo para os mesmos hinos. A letra original do Hino da Independência, por exemplo, é de extrema crueza. Vejam esses versos, que foram subsituídos por outros, mais amenos, em 1922, por Evaristo da Veiga, por ocasião do centenário da Independência: “Os grilhões que nos forjava / Da perfídia astuto ardil:/ Houve mão mais poderosa,/ Zombou deles o Brasil./ Brava gente, brasileira.../ Não temais ímpias falanges / Que apresentam face hostil:/ Vossos peitos, vossos braços / São muralhas do Brasil.” Esse tom hostil foi mantido nos hinos das nações hispânicas, mas por aqui colocamos açúcar na idéia da Pátria. Falamos em clava forte, jamais em crânios rolando ou corpos esquartejados.
Por não ter concorrência à altura nas representações da Pátria, o romantismo teve vida longa e chegou ao século vinte praticamente intacto, pelo menos até os anos 60, quando ainda os estudantes memorizavam as letras e cantavam nas solenidades patrióticas. O modernismo, com Oswald de Andrade, um poeta que mais parece “um romancista em férias”, segundo a visão cáustica de Manuel Bandeira, debochou de todo acervo romântico, que tinha criado uma versão ideal desde o descobrimento, passando pela Independência e a República. Essa aversão se aprofundou com o tempo, até chegarmos ao auge, que é a Vanusa trocando a letra do Hino Nacional de maneira desafinada. Não que ela tenha culpa, pois estava sob efeito de um remédio. Mas isso revela a indiferença e a falta de sintonia entre o cidadão e o país.
A República substituiu o poema do Hino Nacional, que vinha do Império, além de tornar menos agressivo o Hino da Independência. Hoje, costumam implicar com a frase “deitado eternamente em berço esplêndido”, que eu acho ótima, pois se refere à soberania conquistada e perene. Mas a verdade é que, atacando os ideais românticos da mãe gentil, que com a ditadura se revelou malvada, ainda estamos marcando passo em termos de representação da Pátria.
O que fazer? Insistir no Romantismo? Acho tanto a letra de Cisne Branco quanto a do Osório Duque Estrada maravilhosas. A longa saga do Hino do Expedicionário é uma peça da visão do paraíso que nos acompanha desde o berço, pois pega emprestado todas as imagens criadas pelas canções populares e os escritores românticos: “Você sabe de onde eu venho?/ Venho do morro, do Engenho,/ Das selvas, dos cafezais,/ Da boa terra do coco,/ Da choupana onde um é pouco,/ Dois é bom, três é demais,/ Venho das praias sedosas,/ Das montanhas alterosas,/ Dos pampas, do seringal,/ Das margens crespas dos rios, Dos verdes mares bravios/ Da minha terra natal”.
Muito suave para quem iria matar inimigos? “Por mais terras que eu percorra,/ Não permita Deus que eu morra/ Sem que volte para lá;/ Sem que leve por divisa/ Esse "V" que simboliza/ A vitória que virá:/ Nossa vitória final,/ Que é a mira do meu fuzil,/ A ração do meu bornal,/ A água do meu cantil,/ As asas do meu ideal,/ A glória do meu Brasil.” Eis o cidadão armado, nas asas de um ideal, partindo para a matança. Ele tem o peito “juvenil”, como diz a letra do Hino à Bandeira e que por um tempo foi trocado por varonil. Mas o Exército fez uma pesquisa e descobriu que o original é juvenil.
O povo moço como o país, nos braços da mãe gentil: o romantismo surgiu praticamente junto com a Independência e opôs a idéia de uma nação madrasta, ruim, exploradora, que era Portugal, a outra doce, gentil, justa e acolhedora, o Brasil. Quando Portugal maltrata os brasileiros emigrados, como vemos no noticiário, lembramos dessa idéia perversa de uma metrópole carrancuda e escravista. O romantismo brasileiro lutou pela libertação dos escravos e quis fazer daqui o ideal de uma terra de paz e harmonia. Não deu certo, a humanidade é puro conflito.
Mas estamos a braços com um problema: quem somos nós? Filhos juvenis da mãe gentil, mas rosnando uns para os outros? Ou uma nação madura que procura um caminho menos idealizado e mais responsável? O certo é que precisamos das nossas representações. Isso se faz com soma. Não podemos jogar a criança fora junto com a água suja, precisamos manter o que conquistamos e partir para frente. Temos um acervo patriótico de nível, com fundas raízes na nacionalidade. Sim, sabemos do que se trata. Chamam de alienação, manipulação. Vejo diferente. Vejo o país consolidado, que se apresenta ao mundo com o “Virandô” que todos conhecem pelo menos uma parte e vibra ao cantar “brava gente brasileira”.
Por mais que a gente sofra, nossa vida tem mais amores. Acreditamos nisso. É nosso objetivo. Terra adorada.
RETRNO - Imagem desta edição: Pesca, de Juliana Duclós.
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