9 de outubro de 2005

O COLECIONADOR DE IDENTIDADES



Esta crônica, publicada hoje, domingo, no caderno Donna, do Diário Catarinense, é a homenagem a uma amizade que cruza décadas sem perder o prumo. Ao anunciar a publicação do texto, avisei Virson Holderbaum que sua persona, os inúmeros personagens que sugere com sua presença e biografia, pode agora ser compartilhada por muito mais gente,e não apenas por seu vasto circuito de amigos.

Nei Duclós

Preciso cruzar mais de cinqüenta quilômetros de imensas propriedades coroadas de lagoas, montanhas cobertas de mato e algumas de tetos nevados, vales e praias, antes de chegar ao núcleo do refúgio deste território oculto, onde mora Herr Holderbaum num castelo tão imponente quanto simples, um paradoxo que define a vida deste ermitão. Ele é um colecionador de identidades, guardadas em inúmeros aposentos, que vai me mostrando aos poucos, conforme se desenrola nossa conversa. O início da visita é ao pé de uma lareira, onde o fogo esquenta um pedaço de pedra lisa. Lá, tornam-se digeríveis pizzas e pinhões.

PAISAGEM - Antes que a lenha torne-se brasa, o conde me conduz ao imenso quintal pontuado de videiras e, depois de um pequeno portão oculto, cruza comigo uma barreira de água por meio de uma ponte levadiça. Ele me leva para o alto de uma duna e mostra o magnífico mar que banha duas ilhas enormes. A praia descortina-se em vários desdobramentos. Tudo está vazio no teimoso Inverno temporão de tímido sol. O vento bate em nosso corpo crivado de balas de safáris antigos. O conde não aponta mais o horizonte inalcançável, como fazia quando sonhávamos despertos. Coloca as mãos para trás, imitando o andar de alguém que não consigo lembrar, e sorri, bem posto no seu mirante. O chão de areia grossa e amarelo-branca torna o momento ainda mais estranho. Tudo parece desmoronar enquanto o dia se mostra gigantescamente novo, tão novo quanto no dia em que aqui chegamos pela primeira vez, vindos de um vale úmido e de um casarão sinistro.

Éramos naquela época náufragos de uma guerra perdida. Mas toda essa memória já não serve para o recluso dono do castelo. Descubro que convivi com sua verve apenas uns quatro anos e que ele faz parte de algo maior que não consigo alcançar agora. Tento impressioná-lo deitando conhecimentos sobre civilizações perdidas, mas para quem viu pessoalmente Miles Davis tocar com Airto Moreira num bas-fond de Nova York, nos anos 60, nada parece impressioná-lo. Ficamos em silêncio e resgato, de repente, a origem daquele passo prudente: é o de Cidadão Kane, antes de dizer Rosebud. O filme de Orson Welles fazia parte das jóias eternas de uma juventude incômoda. Ele assumia o personagem na fase mais introspectiva, palmilhando um Xanadu inverossímil.

ETERNIDADES - De volta à sala, o conde fala do tempo em que mergulhou nas minas de ametistas. Abordo então fantasiosamente a grande civilização da pedra construída pelos gigantes e que tornaram o que chamamos hoje de Brasil um jardim de delícias. Vejo as cataratas escondidas no mato em programas de viagens na televisão. É tudo certinho demais. Foi tudo colocado ali, de propósito. Digo isso para o conde. Ele olha para a fogueira. No fundo, o som de um exercício de violão chega aos nossos ouvidos.

Ele abre a primeira porta e um desconhecido virtuose prepara-se para a glória sem fazer alarde. Abre outra porta e alguém toca violino. Mais adiante, um artesão que trabalha as conchas levanta os olhos. Além, tecedeiras compõem um tapete gigantesco, cujas dobras tomam conta do teto.

Pergunto por que e para que tudo aquilo. Ele diz que prefere dedicar-se ao incentivo das eternidades que repousam nos talentos tímidos, pois cansou da precariedade de um país em sobressalto. Costuma reunir amigos de todos os calibres para grandes ágapes de pizzas feitas uma por uma, no maior capricho. Aprendeu pela vida, entre outras coisas. É quando convoca as identidades ocultas nos aposentos e dissemina o encontro, fonte perene de alegria.

Fala de prêmios perdidos, de vidas passadas, de pessoas mortas, de duendes e saltimbancos. Disfarça-se em algo conhecido para não me assustar. Mas pressinto que toda aquela herdade, não só o quintal do castelo, circundado por um fosso, e que tem as costas viradas para o mar, faz parte de um mundo perdido.

Eu só cheguei ali porque não me acostumo à realidade do que vejo, e não me conformo com a percepção cansada que tenho dos amigos. Sempre acho que existe algo muito maior por trás de cada gesto. Dizem para mim: você idealiza demais as pessoas. Mas olho para o alto e vejo um campanário. Existiria uma capela oculta no castelo? Lá o conde faz suas orações, ao som de cantos gregorianos.

RETORNO - 1.Muita revolta aqui no DF pela matéria "O mensalinho da filha da Elis", que saiu na Veja. 2. Agora os jornalistas acordaram para o blog. Mas ainda estão atrasados, com exceção de alguns, como o impresncídvel blog do Noblat e o Código Aberto, de Carlos Castilho, do Observatório da Imprensa. A maioria trata blog como blog, ou seja, submete-se a uma estrutura considerada imutável. Blog é mídia, é instrumento, não veículo com regras fixas (posts curtos, linguagenzinha tipo informal, essas coisas). Novos veículos de comunicação precisam ser criados utilizando a ferramenta blog, mas está ocorrendo o contrário: os velhos veículos querem devorar os blogs. O Diário da Fonte é um jornal dentro do blog desde 2002. Outra coisa a destacar é que todos os blogs de jornalistas ganham notoriedade nos jornais e revistas (oh, todos blogam!). O Diário da Fonte, para variar, é referência zero na mídia impressa. É duro ser pioneiro e ainda ter de reivindicar, lembrar isso. Ei, eu estava aqui antes. A causa deve ser outubro. Estou em fase de bater o bumbo.

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