Nei Duclós
Toda vez que um de nós se acidentava – e isso ocorria a toda
hora, principalmente comigo – minha mãe se justificava ao entrar no Hospital de
Caridade (hoje em franco processo de desmonte em todo país, com objetivos
torpes de privatização): “Eles nascem certinhos, doutor, mas aí ficam se
estragando”, dizia ela. E me costuravam, deixando terríveis cicatrizes. Era o fim
da lisura com a qual vim ao mundo. Eu já adquiria rugas na pele que iria
degringolar ao longo da vida.
É mais ou menos isso que acontece no mundo. Não é por acaso
que sentimos falta dos bons velhos tempos, que são sempre paradigmas. É que o
universo, por natureza, é um processo de decadência, desconstrução permanente.
Do Paraíso ao Apocalipse, do nascimento à morte, a lógica do sistema é
exatamente essa: perder os atributos naturais e entrar em franca dissolução. Para compensar tamanha tragédia, costumávamos
imaginar um futuro utópico,que mais ou menos reproduziria o ambiente do início
dos tempos. Hoje, vivendo o futuro que imaginávamos, a da família Jetson, vemos
que ele não presta quanto qualquer outra época. O conforto, a paz, a harmonia,
a tranquilidade em oposição ao caos e à queda, está tanto no início quanto estaria
no fim, só que só num deles é real – no começo de tudo, já que o fim sabemos do
que se trata.
Esse é o fato: não sabemos como era realmente no início e
jamais saberemos como será no futuro, mesmo acertando várias previsões. Por
isso fantasiamos, esquecendo que nossa infância também faz parte desse descenso
humano. O que era perfeito para nós, que víamos tudo pela primeira vez, não
passa de um truque dos sentidos: a primeira infância é quando enxergamos de
fato, já que depois nossos olhos só lembram desse impacto. Ficamos cegos o
resto do tempo. Mas imaginamos nosso passado como se tudo estivesse no lugar: a
casa generosa que a todos acolhia, a família numerosa de inúmeras atividades, o
quintal de canteiros e brincadeiras inesquecíveis, as reuniões dançantes onde
podíamos agarrar as beldades da cidade, os filmaços que nos deslumbravam com os
eventos do mundo próximo-distante, e assim por diante. Depois, nada ficou
igual, perdeu o sabor e o sentido, mesmo que a mocidade tenha nos pregado boas
peças, algumas ótimas.
Por um tempo nos enganamos de que tudo é obsoleto. Quando
estamos na faixa dos 20 aos 50, fazemos parte da ilusão maior que é o presente
desvinculado de todas as amarras. Mas basta sobreviver à tempestade para, a
partir dos 60, procurarmos voltar para reencontrar a perfeição perdida. É
inútil, pois nossos olhos não conseguem mais recuperar a emoção dos amores à
primeira vista.
A arte e a literatura são os truques mais evidentes para
instauramos outro tipo de Criação, tão perfeito quando seus modelos. Inventamos
nações, pessoas, situações, histórias e despertamos o assombro das almas ainda
intactas por meio das palavras, cores, formas. Na cultura clássica, a exuberância
dos quadros e dos livros eram a imagem e semelhança do Genesis de um deus, o
autor, o artista, onipotente, que sobrava em suas invenções. Com as vanguardas
do século 20, que desbastavam os excessos em favor de uma arte e uma literatra
mínimas, procurou-se a autenticidade de um presente que é sempre frustrante.
Vivemos hoje no impasse entre resgatar a hegemonia das criações
que sobram em grandeza e beleza, a opção mais atenta à experiência humana,
escassa, precisa, contundente e radical. Dá para servir aos dois senhores? É
possível combinar o claro / escuro nessas duas pontas de um novelo complicado?
Seja qual for a resposta, a verdade é que continuamos em direção à morte das
estrelas, prevista pelos físicos.
É quando nem o pó restará e nossa memória deixará até de ser
um suspiro na paisagem zerada. Estaremos assim cumprindo o destino dessa
loucura que é a trajetória entre a perfeição e a decadência, entre nascimento e
morte. De seres precisos, viramos seres imprecisos. Navegar tem necessidade
dessa precisão, dessa certeza, dessa matemática, dessa música das esferas.
Viver sofre essa imprecisão do caos que se esgarça até virarmos o ponto final
de uma crônica absurda.