Nei Duclós (*)
Soube que a banda do Colégio Santana está voltando. Lembro quando fomos convocados para essa novidade, lá pelo início dos anos sessenta. Víamos os instrumentos recém chegados, brilhantes, quase sedosos, entregues ao toque deslumbrado da gurizada. Os mais parrudos pegaram os bumbos e os tambores. Os magros, os taróis. Os altos, os clarins. Restou para a petizada, entre eles eu, os pífaros, que eram instrumentos dificílimos. Pretos, pesados, na primeira soprada te deixavam no chão. Pareciam inofensivos, aquelas barras cheias de furos e com cheiro de madeira com tinta. Mas exigiam que você esvaziasse todos os pulmões para serem tocados. Pelo menos era o que nos parecia. Depois, os instrutores ensinaram que não era bem assim. Tinha uma coisa chamada embocadura.
Fomos então iniciados na paciência e na possibilidade de tirar melodias daquele enigma. Os pífaros davam um clima de banda inglesa, não deixava que a bateção de couro ou o sopro potente dos metais explodissem nas ruas. Nossa melodia favorita era o “canta, canta, pajarito”, talvez a única que interpretávamos sem errar.
Os uniformes eram a manifestação de suave majestade. A princípio causaram escândalo em Uruguaiana. Não pela calça branca com fitas azuis ou pela jaqueta azul brilhante com talhe militar, parecida com aquelas que viraram moda anos mais tarde, quando os Beatles resolveram usar na Banda do Sgt Peppers. Mas principalmente pelo chapéu, de estilo napoleônico. Ou melhor, pelo penacho amarelo canário que sacudia acima dos chapéus, o que causava gargalhada. Ficávamos fulos, principalmente antes do desfile, quando até os parentes riam o riso idêntico ao dos nossos detratores.
Apesar do penacho, aos poucos fomos conquistando admiradores. Mas nossa vingança foram as viagens para os lugares próximos. Paso de Los Libres até que não obtivemos tanto sucesso, os argentinos jamais dão o braço a torcer por nada. O grande triunfo foi em Alegrete, onde as gurias se atiraram aos nossos pés. Ficamos admirados. Éramos superstars sem saber como se comportar. Muitos de nós começaram então a exibir dotes de puro charme, como fumar, beber e fazer de tudo para disfarçar o uniforme espalhafatoso. Era preciso ser cool, por dentro, sedutor. Como ser tudo isso sacudindo um penacho amarelo pela rua?
Mas fazíamos sucesso e as coisas aos poucos foram se acomodando. Como cresci o dobro dos meus colegas de pífaro, fui compulsoriamente transferido para as cornetas, coisa que me deixava completamente desconfortável. Nunca consegui tirar um som daquele troço e precisava disfarçar. Cansei de ser uma nulidade nos clarins e um dia resolvi mostrar que eu estava adaptado. No momento xis, com grande público presente, numa solenidade cívica, o maestro deu a ordem com seu bastão colorido e eu não tive dúvida. Toquei um ar comprimido para arrasar quarteirão. Vexame total: não era hora do clarim entrar. Por sorte, não saiu também nota nenhuma.
Mas mico maior aconteceu com o cara que tocava surdo, em plena estréia da banda no estádio Eurico Lara, na rua bento Martins, em frente ao antigo curtume. Ele era o vértice do V da palavra Salve, que fazíamos nas evoluções. Era uma peça chave: para onde fosse, toda a banda iria atrás. Pois o sujeito errou de lado e o V saiu virado. Os instrutores, acho que fuzileiros navais, entraram em pânico. O cara do surdo saiu rindo. Era um de nós, um estreante. Na banda e na vida.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada originalmente no jornal A Tribuna, de Uruguaiana. 2. Imagem de hoje: a banda do Santana nos anos 70. Pena que não encontrei a primeira versão, dos anos 60 ou final dos 50, não lembro mais.
Soube que a banda do Colégio Santana está voltando. Lembro quando fomos convocados para essa novidade, lá pelo início dos anos sessenta. Víamos os instrumentos recém chegados, brilhantes, quase sedosos, entregues ao toque deslumbrado da gurizada. Os mais parrudos pegaram os bumbos e os tambores. Os magros, os taróis. Os altos, os clarins. Restou para a petizada, entre eles eu, os pífaros, que eram instrumentos dificílimos. Pretos, pesados, na primeira soprada te deixavam no chão. Pareciam inofensivos, aquelas barras cheias de furos e com cheiro de madeira com tinta. Mas exigiam que você esvaziasse todos os pulmões para serem tocados. Pelo menos era o que nos parecia. Depois, os instrutores ensinaram que não era bem assim. Tinha uma coisa chamada embocadura.
Fomos então iniciados na paciência e na possibilidade de tirar melodias daquele enigma. Os pífaros davam um clima de banda inglesa, não deixava que a bateção de couro ou o sopro potente dos metais explodissem nas ruas. Nossa melodia favorita era o “canta, canta, pajarito”, talvez a única que interpretávamos sem errar.
Os uniformes eram a manifestação de suave majestade. A princípio causaram escândalo em Uruguaiana. Não pela calça branca com fitas azuis ou pela jaqueta azul brilhante com talhe militar, parecida com aquelas que viraram moda anos mais tarde, quando os Beatles resolveram usar na Banda do Sgt Peppers. Mas principalmente pelo chapéu, de estilo napoleônico. Ou melhor, pelo penacho amarelo canário que sacudia acima dos chapéus, o que causava gargalhada. Ficávamos fulos, principalmente antes do desfile, quando até os parentes riam o riso idêntico ao dos nossos detratores.
Apesar do penacho, aos poucos fomos conquistando admiradores. Mas nossa vingança foram as viagens para os lugares próximos. Paso de Los Libres até que não obtivemos tanto sucesso, os argentinos jamais dão o braço a torcer por nada. O grande triunfo foi em Alegrete, onde as gurias se atiraram aos nossos pés. Ficamos admirados. Éramos superstars sem saber como se comportar. Muitos de nós começaram então a exibir dotes de puro charme, como fumar, beber e fazer de tudo para disfarçar o uniforme espalhafatoso. Era preciso ser cool, por dentro, sedutor. Como ser tudo isso sacudindo um penacho amarelo pela rua?
Mas fazíamos sucesso e as coisas aos poucos foram se acomodando. Como cresci o dobro dos meus colegas de pífaro, fui compulsoriamente transferido para as cornetas, coisa que me deixava completamente desconfortável. Nunca consegui tirar um som daquele troço e precisava disfarçar. Cansei de ser uma nulidade nos clarins e um dia resolvi mostrar que eu estava adaptado. No momento xis, com grande público presente, numa solenidade cívica, o maestro deu a ordem com seu bastão colorido e eu não tive dúvida. Toquei um ar comprimido para arrasar quarteirão. Vexame total: não era hora do clarim entrar. Por sorte, não saiu também nota nenhuma.
Mas mico maior aconteceu com o cara que tocava surdo, em plena estréia da banda no estádio Eurico Lara, na rua bento Martins, em frente ao antigo curtume. Ele era o vértice do V da palavra Salve, que fazíamos nas evoluções. Era uma peça chave: para onde fosse, toda a banda iria atrás. Pois o sujeito errou de lado e o V saiu virado. Os instrutores, acho que fuzileiros navais, entraram em pânico. O cara do surdo saiu rindo. Era um de nós, um estreante. Na banda e na vida.
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