Nei Duclós (*)
Pedra lisa, quase transparente, brilha no fundo de um regato, aquela porção de água pura que desce a montanha tecendo a aventura. Mais preciosa que ametista, mais vistosa que pepita, mais valiosa que diamante bruto. Perdida entre tantas, se deposita sem esperança de ser colhida. Tem apenas a beleza exposta no barulho da pequena correnteza, mudando de lugar conforme a chuva, ameaçando despencar na primeira cascata e que se encolhe ao toque quando a descobrimos quase sem querer, numa curva tomada pelo pedregulho.
A mão em forma de luva despenca para apanhá-la antes que flutue, ou suma, ou faça qualquer coisa louca, típica das criaturas do sonho. A mão cruza o filete de água em movimento perdendo a direção. A prata do sol, filtrado por nuvens pálidas, gera a confusão do gesto feito de improviso. O resultado é apanhar pó do leito do riacho, milhões de partículas que por instantes escondem o objeto de desejo, agora impossível de ser localizado diante da escassez dos cinco sentidos.
A paisagem conspira para manter a prenda grudada ao seu ambiente. Quer evitar que ela sofra de súbita demonstração de assombro e depois seja depositada no fundo da mochila, na parte inacessível dos bolsos, no forro de jaquetas abandonadas e por lá fique para sempre, exilada da missão que a natureza, portanto, o destino, lhe reservou. Se o viajante tem pressa, e está ali para bater recordes, ou simplesmente foge do iminente despencar do dia, se quer alcançar a cabana mais próxima antes que a coruja pie, então o tesouro será preservado.
Mas se quem estiver passando for mulher, tudo muda. A pedra é vista como a âncora de um amor que está por vir, o fetiche de uma declaração eterna, o início de um namoro, o presente que jamais se esquece. Mas há um problema: mulher não colhe a pedra, e sim a recebe de alguém que talvez ainda nem saiba que foi escolhido. É preciso então desafiar os planos e gerar uma artimanha. Torcer o pé para chamar o príncipe, envolto em brumas lá adiante. Mal sabe ele que já está sendo encaminhado para a gruta, o ninho, o momento fecundo. Por um milagre, ou talvez porque a mulher saiba gritar em direção do amado sem que ninguém mais escute, ele se precipita para ver o que é. A princesa finge a dor e dirige o olhar pânico para a água.
É quando ele vê, no fundo do rio, a pedra mais valiosa do que dobrões de ouro. Sem atinar direito, pega o que está sendo ofertado pela liquidez do entardecer. Pois agora ficou claro que pássaros, folhas, ciscos, pétalas estão carregando o espírito do rapaz para dentro do mistério. Ele acha que ninguém pensou antes no que surge em sua mente tomada por um breve susto. Assim como colhe a pedra, a estende em direção à moça, já refeita do tombo e pronta para receber a esperada aliança.
É assim que funciona esse expediente maroto que o amor prega nos garotos expostos à esperteza feminina. A pedra colhida no fim-de-semana, quando todos fingiam divertir-se, é o fundamento de uma relação que deve perdurar. Porque é impossível evitar. Assim como existe a certeza de que tudo passa e que o romantismo foi pura perda de tempo dos nossos ancestrais, há também o inevitável arranjo dos pares que jamais tomam caminhos opostos e se unem para uma vida a dois, contrariando os fuxicos, as tendências e até mesmo as celebrações de bodas intermináveis.
Mais do que uma festa ou um bolo de 50 andares, um para cada ano da relação, o que existe é a pequena cesta de vime em frente ao espelho do quarto. Lá, entre agulhas, lantejoulas, brocados, fotos, jaz a pedra lisa colhida um dia no fundo de um regato em flor. A mulher pega a prenda, aperta-a contra o coração e sorri. E lembra a cara de espanto do futuro marido, quando lhe alcançou a jóia. Era o rosto dos predestinados. Os que foram ungidos pelo privilégio de compartilhar o amor na longa trajetória sobre a terra. Ele sabe que participa de uma viagem sagrada, que nasceu num entardecer na serra. Foi quando o brilho da pedra única transformou o regato numa fonte de sentimentos que costuram uma civilização perdida.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-se-semana, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: o romântico rio Sena, foto de Daniel e Carla Duclós. 3. Regina Agrella informa: a Revista de Fotografia SFC, em parceria com a Focus, está divulgando projeto de assinatura gratuita. A Social Foto Clube, revista cultural e de incentivo a fotografia está com nova proposta para voltar à circulação, porém apenas para assinantes e será inteiramente gratuita, sem nenhum custo para recebê-la. Entretanto, para que este projeto possa se viabilizar, há necessidade de comprovar ao público anunciante que há pelo menos 15 mil assinaturas de leitores. Para os interessado em assinar, entre nesta página.
EXTRA: RUY CASTRO É A BOSSA NOVA
Já está nas bancas mais um volume da coleção sobre Bossa Nova da Folha de S. Paulo, escrita e produzida por Ruy Castro. Desta vez é João Donato. Ruy Castro é a bossa nova. Se todos os integrantes do movimento, de uma forma ou outra, renegaram o termo, coube a Ruy Castro consolidar o movimento por meio de seu trabalho de escritor, intelectual, jornalista e civilizador. Ruy Castro explica porque Carlos Lyra é da Bossa Nova, porque João Donato é da Bossa Nova, porque Dick Farney é da Bossa Nova, por mais que tenham esperneado.
O conceito pertence hoje a Ruy Castro, brasileiro do primeiríssimo time. É dele que emana esse mar musical que vem do Brasil profundo, a nos lembrar quem somos de verdade. E ele desempenha esse papel da maneira mais apropriada possível: com um texto enxuto, preciso, generoso, brilhante. Como se nem estivesse aí, com o espírito carioca da fase áurea, a nos dizer que não é preciso elogiá-lo, pois elogio, acrescento, é a palavra mais feia que existe. Quando me dizem que elogio alguém, fico uma fera.
Eu abordo a sintonia entre um autor e a divindade, o que é outra coisa (o resto, tanta coisa, deixo de fora, e essa exclusão é a paulada mais profunda que posso dar). Elogio é para os medíocres. O que devemos fazer é tocar Ruy Castro e agradecer pelo seu trabalho de décadas a favor do que perdemos por enquanto, mas que jamais perderemos de fato.
Pedra lisa, quase transparente, brilha no fundo de um regato, aquela porção de água pura que desce a montanha tecendo a aventura. Mais preciosa que ametista, mais vistosa que pepita, mais valiosa que diamante bruto. Perdida entre tantas, se deposita sem esperança de ser colhida. Tem apenas a beleza exposta no barulho da pequena correnteza, mudando de lugar conforme a chuva, ameaçando despencar na primeira cascata e que se encolhe ao toque quando a descobrimos quase sem querer, numa curva tomada pelo pedregulho.
A mão em forma de luva despenca para apanhá-la antes que flutue, ou suma, ou faça qualquer coisa louca, típica das criaturas do sonho. A mão cruza o filete de água em movimento perdendo a direção. A prata do sol, filtrado por nuvens pálidas, gera a confusão do gesto feito de improviso. O resultado é apanhar pó do leito do riacho, milhões de partículas que por instantes escondem o objeto de desejo, agora impossível de ser localizado diante da escassez dos cinco sentidos.
A paisagem conspira para manter a prenda grudada ao seu ambiente. Quer evitar que ela sofra de súbita demonstração de assombro e depois seja depositada no fundo da mochila, na parte inacessível dos bolsos, no forro de jaquetas abandonadas e por lá fique para sempre, exilada da missão que a natureza, portanto, o destino, lhe reservou. Se o viajante tem pressa, e está ali para bater recordes, ou simplesmente foge do iminente despencar do dia, se quer alcançar a cabana mais próxima antes que a coruja pie, então o tesouro será preservado.
Mas se quem estiver passando for mulher, tudo muda. A pedra é vista como a âncora de um amor que está por vir, o fetiche de uma declaração eterna, o início de um namoro, o presente que jamais se esquece. Mas há um problema: mulher não colhe a pedra, e sim a recebe de alguém que talvez ainda nem saiba que foi escolhido. É preciso então desafiar os planos e gerar uma artimanha. Torcer o pé para chamar o príncipe, envolto em brumas lá adiante. Mal sabe ele que já está sendo encaminhado para a gruta, o ninho, o momento fecundo. Por um milagre, ou talvez porque a mulher saiba gritar em direção do amado sem que ninguém mais escute, ele se precipita para ver o que é. A princesa finge a dor e dirige o olhar pânico para a água.
É quando ele vê, no fundo do rio, a pedra mais valiosa do que dobrões de ouro. Sem atinar direito, pega o que está sendo ofertado pela liquidez do entardecer. Pois agora ficou claro que pássaros, folhas, ciscos, pétalas estão carregando o espírito do rapaz para dentro do mistério. Ele acha que ninguém pensou antes no que surge em sua mente tomada por um breve susto. Assim como colhe a pedra, a estende em direção à moça, já refeita do tombo e pronta para receber a esperada aliança.
É assim que funciona esse expediente maroto que o amor prega nos garotos expostos à esperteza feminina. A pedra colhida no fim-de-semana, quando todos fingiam divertir-se, é o fundamento de uma relação que deve perdurar. Porque é impossível evitar. Assim como existe a certeza de que tudo passa e que o romantismo foi pura perda de tempo dos nossos ancestrais, há também o inevitável arranjo dos pares que jamais tomam caminhos opostos e se unem para uma vida a dois, contrariando os fuxicos, as tendências e até mesmo as celebrações de bodas intermináveis.
Mais do que uma festa ou um bolo de 50 andares, um para cada ano da relação, o que existe é a pequena cesta de vime em frente ao espelho do quarto. Lá, entre agulhas, lantejoulas, brocados, fotos, jaz a pedra lisa colhida um dia no fundo de um regato em flor. A mulher pega a prenda, aperta-a contra o coração e sorri. E lembra a cara de espanto do futuro marido, quando lhe alcançou a jóia. Era o rosto dos predestinados. Os que foram ungidos pelo privilégio de compartilhar o amor na longa trajetória sobre a terra. Ele sabe que participa de uma viagem sagrada, que nasceu num entardecer na serra. Foi quando o brilho da pedra única transformou o regato numa fonte de sentimentos que costuram uma civilização perdida.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-se-semana, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: o romântico rio Sena, foto de Daniel e Carla Duclós. 3. Regina Agrella informa: a Revista de Fotografia SFC, em parceria com a Focus, está divulgando projeto de assinatura gratuita. A Social Foto Clube, revista cultural e de incentivo a fotografia está com nova proposta para voltar à circulação, porém apenas para assinantes e será inteiramente gratuita, sem nenhum custo para recebê-la. Entretanto, para que este projeto possa se viabilizar, há necessidade de comprovar ao público anunciante que há pelo menos 15 mil assinaturas de leitores. Para os interessado em assinar, entre nesta página.
EXTRA: RUY CASTRO É A BOSSA NOVA
Já está nas bancas mais um volume da coleção sobre Bossa Nova da Folha de S. Paulo, escrita e produzida por Ruy Castro. Desta vez é João Donato. Ruy Castro é a bossa nova. Se todos os integrantes do movimento, de uma forma ou outra, renegaram o termo, coube a Ruy Castro consolidar o movimento por meio de seu trabalho de escritor, intelectual, jornalista e civilizador. Ruy Castro explica porque Carlos Lyra é da Bossa Nova, porque João Donato é da Bossa Nova, porque Dick Farney é da Bossa Nova, por mais que tenham esperneado.
O conceito pertence hoje a Ruy Castro, brasileiro do primeiríssimo time. É dele que emana esse mar musical que vem do Brasil profundo, a nos lembrar quem somos de verdade. E ele desempenha esse papel da maneira mais apropriada possível: com um texto enxuto, preciso, generoso, brilhante. Como se nem estivesse aí, com o espírito carioca da fase áurea, a nos dizer que não é preciso elogiá-lo, pois elogio, acrescento, é a palavra mais feia que existe. Quando me dizem que elogio alguém, fico uma fera.
Eu abordo a sintonia entre um autor e a divindade, o que é outra coisa (o resto, tanta coisa, deixo de fora, e essa exclusão é a paulada mais profunda que posso dar). Elogio é para os medíocres. O que devemos fazer é tocar Ruy Castro e agradecer pelo seu trabalho de décadas a favor do que perdemos por enquanto, mas que jamais perderemos de fato.
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