Meu mote é a obrigatória coleção sobre bossa nova que a Folha de S. Paulo oferece todo domingo por meio da missão civilizatória de seu melhor jornalista, Ruy Castro. Todo fim-de-semana compro um exemplar da série, que começou com Tom Jobim, seguiu com Vinícius, depois Baden Powell e Carlos Lyra e chega hoje a Nara Leão. O bom de Ruy Castro, que domina o ofício e o assunto, é que pouco ou nada resta a dizer quando ele aborda bossa nova. O que nos cabe é destacar alguns aspectos do mini-livro escrito por ele, embalagem perfeita para os CDs, que toco sempre com prazer renovado.
Sou suspeito ao falar de Nara e bossa nova. Ainda no começo do movimento, lá pelo início dos sessenta, quando o LP de 1958 de João Gilberto, Chega de Saudade, era praticamente um lançamento, eu escutava bossa de manhã à noite na rádio São Miguel de Uruguaiana, que tinha como diretor de programação Artur Ramos, irmão do ator maior Miguel Ramos. Nunca é demais repetir essa origem da minha formação musical, que tinha antecedentes gloriosos na matéria de Música, obrigatória nas escolas públicas do Brasil Soberano, quando ainda éramos um país, o da Era Vargas.
Em Nara Leão confluem os vetores mais elaborados da civilização brasileira. A prova é exatamente seu lado mais polêmico, a voz de Nara. Uma voz que já era motivo de dúvidas quando ela ainda participava da turma da bossa no seu apartamento, espécie de tornassol da química do movimento e não seu principal protagonista, já que a bossa, segundo Ruy Castro, é fruto de longa vivência musical anterior, que tinha nas boates e em músicos seminais seus mais importantes atores. Os parceiros de Nara nessa viagem, todos músicos emergentes e super-talentosos, inocularam o vírus que acompanhou nossa grande intérprete por toda a vida.
Quase desafinada, enfadonha, com poucos recursos vocais: essa era a percepção inicial dos canarinhos da seleção bossanovista (depois, com o tempo, tudo mudou). Costumo dizer que nossa imagem externa começa dentro de casa. O Brasil, por exemplo, é visto pelo que acredita ser. O estrangeiro acha de nós aquilo que formatamos aqui dentro. A mesma coisa aconteceu com Nara. Os caras queriam mesmo era Sylvia Telles, Claudete Soares e finalmente Maysa, o pivô da crise de Nara com seu namorado, o letrista de tantos sucessos, Ronaldo Bôscoli (segundo Ruy, motivo da ruptura dela com a equipe original da onda, quando decidiu estrear em LP cantando músicas de sambistas do morro). Mas Nara não era melhor do que as outras, era mais, estava acima.
Não é por nada que ela se transformou nesse fenômeno carismático, que aglutinou todo o clima cultural da época. Porque sabia cantar como ninguém, graças à sua devoção pelo preparo musical, que começou aos 12 anos quando resolveu aprender a tocar violão com um mestre do ramo. Acho Maysa o máximo, mas gosto de ver em Nara algo maior. Tudo nela, afinação, postura da voz, notas, cadência, repertório, arranjo, a transformam numa personagem única, de alta voltagem, que cruza o tempo sem ultrapassagens.
Escutar Nara não é apenas um prazer, é um acontecimento cultural. Não precisa, como em relação a João Gilberto, nem fazer silêncio, pois ela compartilha sua aparente escassez para nos seduzir e atingir algo mais importante, a nossa cumplicidade. Ter Nara ao nosso lado, apesar de seu desaparecimento precoce, é um privilégio que nos serve como armamento pesado. Contra a brutalidade do ruído e da distorção, temos Nara Leão, do Brasil profundo, nascida em 1942, criada em pleno governo Vargas (a boa e velha “coincidência” que gerou tantos gênios entre nós).
Contra os vibratos chorosos e enjoativos, temos a limpidez de Nara. Contra o berreiro sem fim, temos os limites amorosos da música proferida por Nara. Contra a desesperança, temos Nara e as canções que sempre nos traz. Contra a entrega do país, temos Nara, que depois de cantar o morro, voltou-se novamente para a bossa e gravou tudo, como nos conta Ruy Castro, autor do imperdível “Chega de Saudade”, livro de cabeceira de todo cidadão que escolheu a emoção da nossa melhor música para enfrentar este tempo de assassinos.
Para o Brasil terminal, em coma, temos a herança de Nara Leão, a que não viveu em vão e nos deixou esse presente que é a música brasileira sob medida para o que devemos ser sempre. Vá à banca, compre Nara Leão, é só 12 reais e 90 centavos. E
Escutem: a vela queima;
a fruta tomba na varanda;
escutem o calor da moça irradiando;
escutem: a trança cresce;
longe, longe, o menino anda;
o lento subir da lua, faz ruídos
de lua branca
(essa é uma letra que fiz para música de Paulo Loguércio, que reencontrei esses tempos depois de 30 anos e ele tinha esquecido tudo, o ingrato; ei,Paulo, eu ainda lembro da melodia e da letra; pede para eu cantar; é pura bossa nova).
RETORNO - 1. O artigo de Roberto Romano na página 3 da Folha de ontem, sábado, é definitivo: "O Brasil, com auxílio do segredo e da corrupção endêmica, é imenso e melancólico sepulcro do sonho democrático. " Essa frase é puro Diário da Fonte. Paa quem não assina o UOL tem o artigo completo aqui. 2. Hoje é Sete de Setembro. Este texto de hoje fica sendo a comemoração em homenagem à Pátria que tanto amamos.
Sou suspeito ao falar de Nara e bossa nova. Ainda no começo do movimento, lá pelo início dos sessenta, quando o LP de 1958 de João Gilberto, Chega de Saudade, era praticamente um lançamento, eu escutava bossa de manhã à noite na rádio São Miguel de Uruguaiana, que tinha como diretor de programação Artur Ramos, irmão do ator maior Miguel Ramos. Nunca é demais repetir essa origem da minha formação musical, que tinha antecedentes gloriosos na matéria de Música, obrigatória nas escolas públicas do Brasil Soberano, quando ainda éramos um país, o da Era Vargas.
Em Nara Leão confluem os vetores mais elaborados da civilização brasileira. A prova é exatamente seu lado mais polêmico, a voz de Nara. Uma voz que já era motivo de dúvidas quando ela ainda participava da turma da bossa no seu apartamento, espécie de tornassol da química do movimento e não seu principal protagonista, já que a bossa, segundo Ruy Castro, é fruto de longa vivência musical anterior, que tinha nas boates e em músicos seminais seus mais importantes atores. Os parceiros de Nara nessa viagem, todos músicos emergentes e super-talentosos, inocularam o vírus que acompanhou nossa grande intérprete por toda a vida.
Quase desafinada, enfadonha, com poucos recursos vocais: essa era a percepção inicial dos canarinhos da seleção bossanovista (depois, com o tempo, tudo mudou). Costumo dizer que nossa imagem externa começa dentro de casa. O Brasil, por exemplo, é visto pelo que acredita ser. O estrangeiro acha de nós aquilo que formatamos aqui dentro. A mesma coisa aconteceu com Nara. Os caras queriam mesmo era Sylvia Telles, Claudete Soares e finalmente Maysa, o pivô da crise de Nara com seu namorado, o letrista de tantos sucessos, Ronaldo Bôscoli (segundo Ruy, motivo da ruptura dela com a equipe original da onda, quando decidiu estrear em LP cantando músicas de sambistas do morro). Mas Nara não era melhor do que as outras, era mais, estava acima.
Não é por nada que ela se transformou nesse fenômeno carismático, que aglutinou todo o clima cultural da época. Porque sabia cantar como ninguém, graças à sua devoção pelo preparo musical, que começou aos 12 anos quando resolveu aprender a tocar violão com um mestre do ramo. Acho Maysa o máximo, mas gosto de ver em Nara algo maior. Tudo nela, afinação, postura da voz, notas, cadência, repertório, arranjo, a transformam numa personagem única, de alta voltagem, que cruza o tempo sem ultrapassagens.
Escutar Nara não é apenas um prazer, é um acontecimento cultural. Não precisa, como em relação a João Gilberto, nem fazer silêncio, pois ela compartilha sua aparente escassez para nos seduzir e atingir algo mais importante, a nossa cumplicidade. Ter Nara ao nosso lado, apesar de seu desaparecimento precoce, é um privilégio que nos serve como armamento pesado. Contra a brutalidade do ruído e da distorção, temos Nara Leão, do Brasil profundo, nascida em 1942, criada em pleno governo Vargas (a boa e velha “coincidência” que gerou tantos gênios entre nós).
Contra os vibratos chorosos e enjoativos, temos a limpidez de Nara. Contra o berreiro sem fim, temos os limites amorosos da música proferida por Nara. Contra a desesperança, temos Nara e as canções que sempre nos traz. Contra a entrega do país, temos Nara, que depois de cantar o morro, voltou-se novamente para a bossa e gravou tudo, como nos conta Ruy Castro, autor do imperdível “Chega de Saudade”, livro de cabeceira de todo cidadão que escolheu a emoção da nossa melhor música para enfrentar este tempo de assassinos.
Para o Brasil terminal, em coma, temos a herança de Nara Leão, a que não viveu em vão e nos deixou esse presente que é a música brasileira sob medida para o que devemos ser sempre. Vá à banca, compre Nara Leão, é só 12 reais e 90 centavos. E
Escutem: a vela queima;
a fruta tomba na varanda;
escutem o calor da moça irradiando;
escutem: a trança cresce;
longe, longe, o menino anda;
o lento subir da lua, faz ruídos
de lua branca
(essa é uma letra que fiz para música de Paulo Loguércio, que reencontrei esses tempos depois de 30 anos e ele tinha esquecido tudo, o ingrato; ei,Paulo, eu ainda lembro da melodia e da letra; pede para eu cantar; é pura bossa nova).
RETORNO - 1. O artigo de Roberto Romano na página 3 da Folha de ontem, sábado, é definitivo: "O Brasil, com auxílio do segredo e da corrupção endêmica, é imenso e melancólico sepulcro do sonho democrático. " Essa frase é puro Diário da Fonte. Paa quem não assina o UOL tem o artigo completo aqui. 2. Hoje é Sete de Setembro. Este texto de hoje fica sendo a comemoração em homenagem à Pátria que tanto amamos.
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