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30 de novembro de 2015

CLARICE E A HORA DA ESTRELA



Reproduzo aqui a interpretação de Miguel Lobato Duclós (1978-2015) de um dos livros de Clarice Lispector, onde ele usa o conhecimento teológico e filosófico – conquistas árduas de sua curta e iluminada vida – pra devassar uma obra muito celebrada. Miguel é pura desmedida: sabe muito e está sempre à vontade para colocar seus mergulhos em palavras acessíveis, mas não menos profundas. Um mestre da palavra, com uma obra infinita.

“AQUELE QUE NOMEIA”

Miguel Duclós

“O nome é algo importante na teologia. Basta lembrar que um dos 10 mandamentos no Velho Testamento, o segundo, é o de não tomar o santo nome de Deus em vão. Na tradição ocultista da Cabala, o Messias é aquele que irá pronunciar o nome de Deus, dando início ao final dos tempos e o juízo final. Os estudiosos da Cabala procuram os sinais ocultos nos manuscritos originais do Torá para tentar encontrar o nome de Deus expresso na escrita.

Isso acontece porque quem nomeia adquire poder sobre o nomeado. Pois cada ser tem uma parte sua infinita, ilimitada, perfeita, a essência, e nomear é fechar isso em uma síntese, em um sistema, ou num elemento deste, passível de ser representado e referido por uma “imagem”, sendo assim reduzido. O nomeador é de certa forma, por esse mecanismo, “dono” daquilo que nomeia.

Adão é aquele que nomeia. Vejamos os seguintes versículos do Gênesis: (cap 2, 18-20)

“Da terra formou, pois, o Senhor Deus todos os animais o campo e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem, para ver como lhes chamaria; e tudo o que o homem chamou a todo ser vivente, isso foi o seu nome.

Assim o homem deu nomes a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais do campo; mas para o homem não se achava ajudadora idônea.”

Agora vejamos os seguintes trechos do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos que, segundo eles próprios, corroba o Torá e o Evangelho:

“Ele ensinou a Adão todos os nomes e depois apresentou-os aos anjos e lhes falou: Nomeai-os para Mim e estiverdes certos
Disseram: Glorificado sejas! Não possuímos mais conhecimentos além do que Tu nos proporcionaste, porque somente Tu és Prudente, Sapientíssimo.

Ele ordenou: Ó Adão, revela-lhes os seus nomes. E quando ele lhes revelou os seus nomes, asseverou (Deus): Não vos disse que conheço o mistério dos céus e da terra, assim como o que manifestais e o que ocultais?

E quando dissemos aos anjos: Prostrai-vos ante Adão! Todos se prostraram, exceto Lúcifer que, ensoberbecido, se negou, e incluiu-se entre os incrédulos.”

Agora, vejamos o seguinte trecho do Fogo Interior de Carlos Castaneda que vou citar do ebook em inglês:

“Don Juan continued his explanation and said that in examining the first attention, the new seers realized that all organic beings, except man, quiet down their agitated trapped emanations so that those emanations can align themselves with their matching ones outside.Human beings do not do that; instead, their first attention takes an inventory of the Eagle’s emanations inside their cocoons.

“What is an inventory, don Juan?” I asked.

“Human beings take notice of the emanations they have inside their cocoons,” he replied. “No other creatures do that. The moment the pressure from the emanations at large fixates the emanations inside, the first attention begins to watch itself. It notes everything about itself, or at least it tries to, in whatever aberrant ways it can. This is the process seers call taking an inventory.”

Falando em Castaneda, vale lembrar que os brujos do grupo do Don Juan usavam todos nomes falsos, justamente para escapar do poder fixador da história pessoal. Castaneda também o usou, uma época, inclusive com documentos forjados, trabalhando como um cozinheiro fritador de hamburgens numa lanchonete de beira de estrada. Grosso modo, podemos “associar” os três trechos citados entre si.

O que eu percebi hoje que nunca tinha me ocorrido é que a música Simpathy for the Devil, dos Rolling Stones, tem em seu refrão o verso “Please to meet you / Hope you guess my name”Ou seja, existem pelo menos duas ironias, ao meu ver conscientes, expostas nesse poema. A mais óbvia é que o “devil” da letra está zombando e desafiando o poder de Adão de nomear, “com o guess my name”. Temos que considerar também que diabo é uma das palavras com mais sinônimos no dicionário, justamente porque não é considerado de bom agouro nomeá-lo. Aliás, no mundo fictício do Harry Potter, o vilão Lord Valdemort é às vezes referido como “você-sabe-quem”.
A outra ironia está na palavra “hope” (esperança) . O homem tem a esperança e a fé de que vai alcançar a salvação.

Lúcifer é a estrela da manhã, segundo os versos de Isaías. O que não é comumente considerado é que o tempo celeste não se efetivaria como uma linha de tempo justaposta, mas antes dialógica e diacrônica. Ou seja, não em um ponto X da “história” Lúcifer foi expulso do céu e deixou de ser anjo desde então. Mas antes, é uma história inscrita na alma diante de dois opostos que significam o afastamento ou presença de Deus no ser, por conta dos “pecados”. Em um dos polos, Lúcifer continuaria sendo o Anjo bom, e no outro, o rei de um mundo de sombras, ou seja, um deus do inferno, que é inferno porque não há essência. Alguns consideram que o Apocalipse não virá em algum ano x da história, mas antes que já aconteceu e acontece várias vezes, já que o tempo é figurado, é algo que o homem teria que enfrentar “fenomenologicamente” e a cada vez na configuração de sua alma.

O nome é importante na obra literária A Hora da Estrela da escritora Clarice Lispector. Tanto que a personagem principal se chama Macabéa, que é uma clara referência à Bíblia (Macabeus). Aliás, antes de nomeá-la, o ficctício narrador Rodrigo S.M tece uma série de considerandos, dando um peso extra ao ato de nomear um personagem. As referências religiosas permeiam todo o texto. O título “A hora da estrela” é comumente considerado, de forma infantil, devido ao atropelamento da personagem, que aglomera uma porção de gente ao redor e por isso, nesse breve instante teria se tornado uma “estrela” e deixado de ser anônimo. Ora, ao meu ver isso não é correto. O livro se chama a Hora da Estrela porque é a hora que Lúcifer vence a força de vida da protagonista, fechando sobre ela um ciclo mórbido que acaba por ser seu fim, justo no momento em que ela “abre os olhos” para o que está acontecendo na sua vida, orientada pela vidente.

No famoso versículo sobre o príncipe da Babilônia associado a Lúcifer, em Isaías 14 ele é chamado de “estrela da manhã” (um dos apelidos também do planeta vênus). Lúcifer é a estrela da manhã. Vejamos o seguinte trecho da obra:

“E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro. Você conhece algum estrangeiro?
– Não senhora – disse Macabéa já desanimando.
– Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verde ou castanhos ou pretos. E se não fosse porque você gosta de seu ex-namorado, esse gringo ia namorar você. Não! Não! Não! Agora estou vendo outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou também ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você! Ele tem muito dinheiro, todos os gringos são ricos. Se não me engano, e nunca me engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar!”

Na coleta de mitos populares, é comum associar Lúcifer ao “anjo galã”, o gostosão, senhor das hordas infernais, que seduz as mulheres e as transforma em bruxas, para navegar por mundos paralelos.

A cartomante, porém, erra o alvo, embora acerte alguma coisa na sua predição. Mais adiante lemos que

“E sou sempre sincera: por exemplo, acabei de ter a franqueza de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropelada,ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela?”

Ou seja, ela previu que alguém ia ser atropelado, mas não acertou quem. Macabéa terá o encontro com esse “estrangeiro” que irá mudar a vida dela. O encontro se dá no atropelamento. A autora não podia ser mais clara ao dizer quem ele é, já que diz textualmente mais adiante:

“Terá tido ela saudade do futuro? Ouço a música antiga de palavras e palavras, sim, é assim. Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.O que é que estou vendo agora e que me assusta? Vejo que ela vomitou. um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!E então – então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.

Até tu, Brutus?!Sim, foi este o modo como eu quis anunciar que – que Macabéa morreu. Vencera o Príncipe das Trevas. Enfim a coroação.” (grifo meu)

A estrela de mil pontas, o “algo luminoso” de que vale a autora, pode também ser a sua força de vida, o seu brilho, que embora estivesse acuado, existia, e precisava de apoio – que não vinha – e possibilidade de se desenvolver e fixar. Vale lembrar que a autora escreveu esse livro quando já estava doente, quase desenganada, em 1977, daí o tom niilista.

O texto todo é permeado pelo vazio existencial, ou seja, a falta de essência, e a repetição. O inferno, na mitologia semita, é a repetição do errado, que leva ao afastamento da essência, até que se resolva a questão do pecado, e se ache a saída. (Por exemplo expiar os pecados no pugagatório). Esse o sentido aliás da “Rádio Minuto”. Aliás, o livro tem uma “Hora” no título, e a rádio é de “minutos”, ou seja, os pequenos episódios dos minutos da vida de Macabéa são todos fechados quando a hora, que é dona dos minutos, completa seu ciclo e fecha em cima do signo da estrela. Quando a cartomante, que lhe abre os olhos, dá as pistas de que seus canais de saída estavam se fechando, especialmente com a perda do namorado e a futura perda do emprego.

Mais que denunciar, o livro encarna os preconceitos de classe. A falta material coincide com a falta espiritual. Ou seja, ela é incapaz de enxergar a riqueza na pobreza. A mesma riqueza que permite, por exemplo, que aconteça uma finíssima arte popular, como o Rio de Janeiro sempre provou. O preconceito contra nordestinos aparece várias vezes. Olímpico mata alguém no “confim do sertão” e passa vaselina no cabelo que as “cariocas acham nojento”. O sonho dele é apenas participar da classe média no “sul”. Um dos pontos desnecessários do texto ( o outro ao meu ver foi ela ter se mijado no zoológico – ) é que Olímpico, por ter matado alguém com faca, fica excitado com açougue e a carne fatiada, mas gosta da amiga da Macabéa porque o pai dela é açougueiro. Essa amiga (Glória) tem “bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido”. Isso ao meu ver é simples preconceito da escritora, junto com o fato de Olímpico se perguntar se ela “é loira embaixo também”. Mas tudo redunda no protesto mudo contra a exclusão, a mediocridade na exclusão. Quer dizer, realização espiritual para ela é ter os preceitos da vida burguesa: acesso à educação e cultura burguesa, às comidas, ao casamento – modelo de família burguês, e um bom emprego.

Tudo bem, mas aí quem não está dentro disso vai para o inferno? Parece meio forçado. O tom é proposital, irônico e desalentado. Talvez por isso que o livro seja patrocinado pela Coca-cola, como ela coloca no início. A riqueza do livro não está no enredo, mas na discussão que o narrador faz sobre a linguagem. Que, tenho que admitir, ela usa com maestria. A construção do texto é tão forte e bem elaborada que você não sente vontade de largar o livro antes de terminá-lo, o que não é difícil, já que é um texto bem curto. (Miguel Lobato Duclós em 28 de abril de 2006.)

Miguel Lobato Duclós, leia também no link

http://blog.cybershark.net/miguel/2006/04/28/aquele-que-nomeia/

TUITS DO TUMULTO GERAL



Nei Duclós

Tumultos do Black Friday são treinamento para a onda de saques que o caos financeiro está cavando.

Oferta é véspera de carestia. Queima de estoque para realimentar a indústria monopolizada. Ilusão em época de crise.

Uma maneira de esvaziar o Black Friday é colocar o Brasil nas ofertas.


HISTÓRIA E TIRANIA

A oposição venceu as eleições presidenciais argentinas. Lá o avião do candidato contra o governo não "caiu".

História mesmo não interessa. O que importa são os "momentos históricos" anunciados pela televisão, eventos ao vivo confundidos com História

História é uma ciência que produz pensamento interagindo com o passado. Não é visível a olho nu. Não existe testemunha ocular da História.

Para acessar fatos passados, só é possível por meio de versões. Weber inventou o Tipo Ideal, Michelet inventou a Revolução Francesa.

O Brasil substituiu sua versão ufanista pelo lixo da História. Somos culpados desde o nascimento e nosso futuro é a lama tóxica no paraíso.

Pode escrever. Se alguém fala sobre História do Brasil dá uma risadinha de lado. Pulhas.

Historiador aparelhado que usa versões como fatos para fazer política é tão corrupto como qualquer desviador de verba pública.

Todo o dinheiro da nação está nas mãos da bandidagem. Para isso usaram a política, para enriquecer até a quinta geração.

O mandato tampão do ex-presidente do PDS, o partido da ditadura, preparou o terreno para legitimar a tirania. Grande democrata.

Há mais de dez anos falo essas coisas http://www.novacultura.de/0406nei.html . Mas só agora ficou claro o que foi feito do país que tinha esperança.

O que fazer com esse fantástico fracasso político ? Em primeiro lugar nos convencer que a tirania não foi derrotada em 1985.

Hoje temos o rescaldo da mentira chamada Nova República. Os facínoras tomaram conta do país, e saquearam todo o patrimônio.

As diretas já não derrubaram a ditadura. O movimento foi derrotado no Congresso. Foi uma choradeira geral. Lágrima não é poder.

Todo mundo acreditou que tinha derrubado a ditadura.Foi só os políticos exibirem o sovaco molhado cantando o hino e dando as mãos .

A ditadura civil militar virou democracia com a erradicação da farda, a "morte" de Tancredo e o mandato tampão do ex-presidente do PDS.

Um dos truques no Brasil foi batizar a legitimação da ditadura de democracia em 1985. Hoje vemos para que serviu tudo aquilo.

O banco suspeito regou de milhões da orgia especulativa as campanhas dos principais partidos. Não importa quem seja eleito, importa o lucro.

Direita e esquerda são vasos comunicantes de um laboratório lacrado, onde o Mal se transmuta em ciência e a cidadania vira cobaia.

O capitalismo é uma matemática perversa, o socialismo um erro de cálculo. A inteligência se corrompe fingindo inocência e fornecendo álibis.

Megatrilionário da indústria financeira e dos monopólios dá conselhos políticos. Faz sentido. Não temos estadistas, temos subalternos.


LIVROS

Livros não são mais de escritores, são de celebridades que cometem prosa.

Escritor lança livro e jornalão não dá a mínima. O sujeito que colocou a TV a serviço da tirania lança um livro e a imprensa cai de quatro.

Vagabundagem adora lançar livros porque sente inveja da noite de autógrafos. Acha o máximo desenhar um xis nos exemplares.

Literatura e outras artes produzidas por talentos de verdade ficam soterrados no ostracismo enquanto a mídia roda no carrossel da idiotia.

Noticiário cultural foi substituído pelas estripulias dos pixulecos e das prexecas.

Escritor lança livro, manda vários exemplares para a redação, não sai uma linha. Vagabunda lança "livro" e a imprensa dá capa.

Jornalismo é serviço público, exercido dentro da ética e da lei, mesmo que esteja sob a iniciativa privada. Dono de jornal não deve apitar.

Se um dono de jornal liga para a redação proibindo ou manipulando reportagens deveria ser denunciado.


CIÊNCIA E AMBIENTE

O governo está entre os desastres naturais do Brasil.

Não existem moradores no Brasil. Existem empresas, governos, interesses, burocracia. Morador é descartável.

Ciência são versões aceitas como fatos.  Cultura são fatos vistos como versões.

Jornalão explica diferença entre ora e hora. Fácil. Ora é quando oramos, hora é o que fazemos.

Jornalão chama George Harrisson de talentoso. É como chamar Mozart de bom garoto.

Um "mapa de viés". Nossa. Daqui a pouco vem um dicionário da clivagem.

Alienígenas somos nós quando pousamos na Lua.

Adoçam a vale e salgam o rio

Sempre implicaram com a expressão do Hino, berço esplêndido, que é a natureza do país. Agora estão satisfeitos? Berço esplêndido kaputt.

Desmate zero não é impedir o desmatamento, é quando não sobrar nenhuma árvore para derrubar.

Multiplicação do pão e do peixe. Pão com bromato e peixe do rio Doce.

Vou ensinar a pescar. Quando o peixe belisca, puxe.

Brasil já é uma ameaça, não precisa de terrorismo.

E todos esses governadores e parlamentares mineiros por que agora não vão lá carpir um lote nas margens do rio Doce?

Minas de metais preciosos virou minas de metais pesados.

O noticiário brasileiro são falas de stand up ditas antes de morrer.

Virão novas leis. Roubar matar serão permitidos. Ser vítima dará cadeia.

China quer importar jumentos do Brasil.  Temos superprodução.


DESFECHO

Homenagem é o remorso da memória.

Eu tinha tudo e não estava bom. Fiquei sem nada e continua ruim.

Falava de outra coisa, mas escutaram a mesma de sempre.

Insuportável solidão ficar sem você. Preciso de você para ficar sozinho.

@neiduclos

29 de novembro de 2015

UMA POLÊMICA ETERNA





A favor ou contra, o pensamento de Marx assombra o debate político há quase dois séculos. Miguel Lobato Duclós (1978-2015) pega o touro a unha, nos limites da Filosofia e do trabalho acadêmico, sem fazer concessões às facilidades das aparelhagens múltiplas que assolam o marxismo, seus fanáticos e seus detratores. Boa oportunidade para entender melhor o que pega neste autor pra lá de polêmico. 
 

“A MATURAÇÃO DO PENSAMENTO DE MARX”

POR MIGUEL DUCLÓS



Trabalho originalmente apresentado para a cadeira de Filosofia Geral – FFLCH-USP .


http://www.consciencia.org/marx.shtml

       " Este trabalho trata de um período histórico-filosófico grande. Abordo aqui desde algumas leituras marcantes para o Jovem Marx até o primeiro capítulo da obra prima deste, O Capital, livro que é fruto uma vida inteira de estudos e coroação de sua maturidade como pensador e teórico. Porém, nosso artigo não tem a pretensão de tratar todos os conceitos fundamentais que foram determinantes para a maturidade do pensamento marxiano, mas sim se limitar a três  conceitos específicos incluídos em três obras de Marx. Na primeira, Os manuscritos Econômico – Filosóficos, de 1844, será destacado  o conceito de alienação, bem como o estilo ainda Feuerbachiano do autor. Na segunda, A ideologia Alemã e nas  Teses sobre Feuerbach, será destacado a ruptura de Marx com sua consciência filosófica anterior, e sua formulação, junto com Engels, da teoria que seria uma das  designações do seu pensamento: o materialismo histórico. No centro de tal teoria está o conceito de Ideologia, que será relacionado com a explanação sobre o fetichismo da mercadoria no primeiro capítulo de O Capital.

        Feuerbach havia demonstrado, em A Essência do Cristianismo, a tese escandalosa para a sociedade da época, que a essência da religião é a essência do ânimo humano, e que a teologia pode ser explicada pela antropologia. Explica o autor que as representações e segredos atribuídos a um Ser sobre-humano não eram mais do que representações humanas naturais, e que aquilo que no imaginário pairava no Céu, pode ser encontrado sem maiores dificuldades no solo da Terra. Dessa forma, o homem transporia para o Céu o ideal de justiça, bondade e virtude que não conseguia realizar na Terra. Colocaria num grau universal e absoluto atributos e qualidades de si mesmo. Todos os Deuses não seriam então, mais do que criações humanas. Feuerbach reconhece o sistema de Hegel como uma teologia especulativa, e critica a Idéia absoluta, que seria baseada na revelação e encarnação cristãs, ultrapassando assim o racional e se tornando teologia. Coloca em seu lugar a noção de Ser genérico do homem. A teologia, religião institucionalizada, é fonte de dogmas a abstrações metafísicas que perdem a ligação com o real e palpável. Cada religião pretende ser a detentora da verdade,  e isso é motivo de fanatismo e intolerância com outras formas de pensamento. A verdade acessível apenas a alguns (revelada pela fé), sem critérios objetivos, torna fácil a manipulação de pequenos grupos sobre os demais, por se tratar de algo que não pode ser demonstrado com base em elementos sensíveis.

        Feuerbach inicia A essência do Cristianismo dizendo que o homem difere do animal por ter uma consciência no sentido estrito, ou seja, sua consciência “tem por objeto o seu gênero, a sua essencialidade” 1. Essa consciência do homem enquanto espécie, que é próprio deste por fazer parte de sua ciência, o difere do animal. Do outro lado está a “consciência de si”. Afirma Feuerbach sobre ela:
        “A consciência de Deus é a consciência de si do homem, o conhecimento de Deus é o conhecimento de si homem. Pelo seu Deus conheces o homem e, vice-versa, pelo homem conheces o seu Deus; é a mesma coisa.” 2

Essa idéia de que a natureza dos deuses difere na mesma proporção da natureza dos povos não é nova. Feuerbach realmente desenvolve algumas frases dos pensadores pré-socráticos, como sua frase de que o “ser é, o não ser não é”, tomada emprestada de Parmênides e aplicada em um contexto mais profunda. Xenófanes de Colofão, mestre de Parmênides, ficou famoso por ser um dos primeiros filósofos a defender a unidade da divindade, o monoteísmo. Também afirmava, como Feuerbach, que a natureza dos Deuses variava com a natureza de quem os adorava. Vejamos os seguintes fragmento de Xenófanes:
        “Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens,
os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm”. E mais adiante:
        “os egípcios dizem que os deuses tem nariz chato e são negros, os trácios, que eles tem olhos verdes e cabelos ruivos.”3

        Por esses trechos, vê-se que, mesmo antes da ascendência do Deus cristão, já havia uma crítica à antropomorfização dos Deuses. Para Feuerbach, uma essência finita não pode ter a mais remota idéia de uma essência infinita. Também Hegel afirma, em Introdução à História da Filosofia,  que o homem não pode conceber o que é o Infinito porque só pode empregar para isso categorias finitas. A religião cristã pretende a essência do homem infinita, mas para Feuerbach o homem só pode ter consciência de tal essência se ela for razão, vontade e pensar.  A consciência de si do homem vem pela consciência do objeto. Feuerbach inicia assim sua busca de superação do subjetivo. O que nas antigas religiões era considerado objetivo, hoje é apenas reflexo de idéias que só podem ser sentidas por abstrações, pertencendo portanto ao interior do homem. Feuerbach constata que a teologia se transformou em antropologia há muito tempo.

        Sua crítica às religiões pretende ser universal, buscando o que há de comum a todas as religiões. Chega à conclusão de que o mundo transcendente e a caracterização humana dos personagens divinos é comum nas religiões. Porém, essa generalização é no mínimo complicada. Muitos povos não podiam separar o sujeito do objeto, ou seja, o indivíduo nada mais era do que parte integrada do ambiente, e não podia ser entendido fora do seu quadro social. A religião muitas vezes não reconhece em sua idéia de divindade características humanas. Pois, afinal, o homem é apenas uma parte do todo,  e nesse caso Deus é identificado com a totalidade da Natureza. Isso ocorre no panteísmo e em algumas religiões indígenas e orientais. A natureza é entendida como um complexo sistema de ambientes que existe independente da percepção humana. O egoísmo e a vaidade são os  responsáveis por representar a divindade como algo humano, e a raça humana como herdeira da Terra. De fato, não é preciso ir muito longe para concluir que a idéia do planeta existir para servir ao homem constitui equívoco grave. O que Feuerbach fala é válido sobretudo para a religião judaico-cristã. No Velho Testamento está escrito que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e no Novo Testamento é um homem que se faz Deus. Para Feuerbach isto é uma inverção da relação sujeito-predicado. O homem cria um sujeito infinito e atribui a ele a criação de si.

        A teoria feuerbachiana causou profunda influência na filosofia do século XIX. Os primeiros a se entusiasmarem com ela foram os jovens hegelianos, dentre eles Marx, que trataremos adiante. Mas a noção materialista de humanismo ateu iria alcançar um reflexo maior no século em que foi proclamada a morte de Deus. Quem mais alto bradou sua morte foi Nietzsche, inicialmente em A Gaia Ciência, e posteriormente em sua obra-prima, Assim Falava Zaratustra. Nietzsche engendra uma crítica severa à moral cristã, que para ele é ascética e mortificadora da vida – a moral dos escravos, que limita a Vontade de Potência. No lugar da metafísica, Nietzsche propõe um apego aos valores da Terra, lugar onde o além-homem – aquele que cria seus próprios valores – direcionaria sua vida e sua paixão. No trecho adiante está uma passagem em que fica claro a relação entre o apego de Nietzsche à filosofia terrena e o materialismo de Feuerbach que prega o mundo sensível:
      
 “Em outras eras, blasfemar contra Deus era o maior dos absurdos; porém Deus morreu, e morreram com ele tais blasfêmias. Agora, o que causa mais espanto é blasfemar da Terra, e ter em mira as entranhas do impenetrável e não a razão da Terra.” 4 A título de curiosidade, vejamos o que Nietzsche fala em O Crepúsculo dos Ídolos: “O homem seria tão somente um equívoco de Deus? Ou então seria Deus apenas um equívoco do homem?”5 . Como se vê, o cerne do pensamento nietzscheano encontra procedência em Feuerbach. Outros paralelos podem ser traçados, como o da crítica ao plano transcendente, herança religiosa e platônica:
      
 “Este mundo, o eternamente imperfeito, pareceu-me um dia a imagem de uma contradição eterna,  e uma alegria inebriante para o seu imperfeito criador (…) Ai, meus irmãos! Este Deus que eu criei era obra humana e humano delírio, como os demais deuses.
      
 Era homem, apenas um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma surgia das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e realmente nunca veio do outro mundo” 6

        Como se vê, filósofos das mais diversas áreas de atuação se aproveitaram das veredas abertas pela crítica de Feuerbach à religião e à teologia.  Mas tal alcance não o livrou de críticas, como por exemplo a dos religiosos, que sugeriram um outro título para o seu livro: “A essência do Anti-Cristianismo” e a do pensador anarquista Max Stirner, que fazia parte da esquerda hegeliana. Stirner -criador de um individualismo radical que fundamenta a liberdade- ataca Feuerbach dizendo que este substituíra meramente a palavra Deus pela palavra homem. Dessa forma, Feuerbach rezaria pelo homem. Segundo Stirner, ele não teria deixado de ser hegeliano, porque apenas transpôs o ideal teológico e divino por uma noção abstrata de humanidade.

Mas Feuerbach teve influência ativa nos hegelianos de esquerda. Engels escreveria, mais tarde, que  todos os neo-hegelianos  foram feuerbachianos. Dentre eles estava Marx, que de inicio adotou alguns conceitos e terminologia de Feuerbach. No primeiro manuscrito de 1844, Marx trata da questão da alienação. Tal termo fazia parte do vocabulário de Feuerbach, para quem a religião era uma alienação, pois, colocando sua essência e sua humanidade num Ser fora de si próprio, no mundo invertido da divindade, o homem vira um ser que não se pertence. Esse é o aspecto religioso da alienação que Feuerbach usa. O homem adora os ídolos que projeta. O próprio Marx afirma que, quanto mais se atribui a Deus, menos sobra para o homem .7
       
O termo alienação foi usado também por Hegel, fazendo parte da dialética, pois o homem aparecia em cada etapa da dialética como distinto do que era antes. Althusser  observa que Marx aplicou a teoria da alienação de Feuerbach à política e a economia. 8  Para Althusser, Marx “esposou” a terminologia e a problemática de Feuerbach durante as suas obras de juventude.9  Por isso, o impacto das obras de 1845, no momento em que rompe com Feuerbach seria muito grande.

        Para Marx, a alienação religiosa seria gerada pela alienação econômica. Tal estado é, para Marx, resultado da realização de o trabalho aparecer como a desrealização do trabalhador. O objeto produzido pelo trabalhador aparece como estranho e independente a ele. As mercadorias existem para suprir necessidades. O sistema capitalista transforma o trabalhador e o trabalho em mercadorias, ao privar o trabalhador dos objetos que produz. Quanto mais ele produz, menos pode possuir. Essas apropriação do objeto pelos possuidores da propriedade, se realiza como alienação do trabalhador. Este, ao pôr sua vida na produção de objetos que não lhe pertencem, perde a posse desta.

        Como afirma Marx, “a alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição com ele”.10

        Marx critica a economia política de então esconder a verdadeira relação entre o empregado e o empregador. O Estado submete os trabalhadores a seus próprios interesses.  O trabalhador ganha um salário que não consegue comprar os produtos que ele próprio produziu. Ele produz coisas para os ricos, mas pouco sobra para ele. Esta é a contradição básica do sistema capitalista na época de Marx. O empregado aparece então apenas como instrumento para o bem estar dos possuidores.

Marx, dialeticamente, oferece um quadro de inversões para as atividades dos trabalhadores: quanto mais produz, menos possui, quanto mais civilizado é o produto feito por ele, tanto mais bárbaro ele se mostra. Nas fábricas as limitações a que o empregado é submetido, como os movimentos repetitivos, as jornadas de trabalho sobre-humanas, o baixo salário, a repressão e outras, apenas evidenciam seu  caráter apenas funcional. Ele não transforma mais a natureza para fazer coisas que estão relacionadas a ele, ou que vão beneficiá-lo diretamente. Sua atividade apenas vai garantir que não morra de fome, pois o salário mínimo é a soma das condições mínimas de subsistência (alimentação e moradia).

        A alienação para Marx ocorre não na relação do trabalhador com o produto de seus trabalhos, mas também na própria atividade produtiva. Ou seja, o trabalho não pertence à natureza do trabalhador, mas sim é condição para que esse sobreviva minimamente, sendo obrigado a se adequar à condições de trabalho acima descritas. Por esse fato, ele apenas se esgota, e não se realiza na plenitude de suas capacidades mentais e físicas. Como afirma Marx, o trabalho “não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades”. 11 Estas outras necessidades geralmente se reduzem à prioridades mínimas, como alimentação, moradia. O meio para satisfazê-las é o dinheiro, um valor que não existe naturalmente, mas é abstraído e convencionado. O trabalhador vendeu seu tempo, seu sentimento, sua força, suas aspirações pelo dinheiro, e na posse de algum, pode trocá-lo por qualquer tipo de mercadoria, inclusive pelas que ajudou a produzir. Este trabalho alienado é um processo de mortificação, em que  homem exerce uma atividade cansativa que não condiz com sua aspiração de indivíduo opinante, de cidadão livre, ou mesmo de animal, que tem emoções, orgulho, instinto, prioridades físicas. Marx afirma que o trabalhador só consegue ser livre nas funções animais, como beber, procriar, comer, mas nas atividades humanas se vê reduzido a animal. Mas estas funções animais primárias estão implicadas com o sistema social a ponto de perderem seu sentido original.

        O homem, ao modificar sua animalidade e sua humanidade, subordinado-a a um sistema social de valores e limitações, modifica-se, perde sua essência. E as esperanças humanas são então projetadas em um além, num Ser Divino, perfeito, de valores eternos. Esta alienação religiosa, subordinada à alienação econômico-política, leva o homem  à incapacidade de reconhecer sua humanidade em si mesmo, porque seu Deus é definido por tudo aquilo que ele mesmo não possui, ou que perdeu.

        Marx, depois de reconhecer dois aspectos do trabalho alienado – a relação do trabalhador com o produto de seu trabalho, e a relação do trabalhado ao ato de produção,  a auto-alienação – fala de uma terceira determinação do trabalho alienado, que parte das outras duas. Marx, usando de um vocabulário feurbachiano sobre Ser genérico, afirma que os dois primeiros tipos de alienação alienam o homem enquanto espécie. A atividade produtiva se transformou em social. Os meios de sobrevivência do homem estão condicionados pelas leis de mercado e do trabalho. Dessa forma, a vida genérica do homem serve de meio para a vida individual, pois a atividade produtiva é o único modo de continuar existindo fisicamente.  Marx então faz uma comparação entre o homem e o animal, que lembra muito a Introdução da Essência do Cristianismo. Ele afirma o animal é a sua própria atividade, não se distingue dela.12  Enquanto o homem possui uma “atividade vital consciente”, pois submete sua atividade vital à vontade e à consciência. Feuerbach, como já observamos, afirmava que a diferença principal entre o homem e o animal é que o homem tem consciência no sentido estrito, que tem como objeto o seu gênero, a sua espécie.13

        Marx continua sua argumentação observando que, se o animal também produz, o homem reproduz toda a natureza, enquanto o animal apenas se reproduz a si. É interessante notar que Marx, embora esteja tratando de uma questão já exposta por outros autores, consegue aprofundar as questões, usando um vocabulário ainda hegeliano, ainda feuerbachiano. Isso acontece, porque naquele  momento, Marx transformava sua consciência filosófica em economia política. Os Manuscritos tem esse duplo caráter, o filosófico e o econômico. Segundo Althusser, os encontros anteriores de Marx com a economia política tratavam apenas de algumas questões e efeitos relacionados com a política econômica. 14 Marx encara, nos Manuscritos, a Economia Política de verdade, formulando teorias que tratam dela como um todo, procurando seus fundamentos. No início dos Manuscritos, Marx afirma que a Economia Política de então parte do fato da propriedade privada sem o explicar. A propriedade privada era pressuposto, por isso os economistas não a haviam  problematizado como deviam.  Nos Manuscritos, são levantados diversos conceitos e problemas que aparecerão mais tarde em O Capital. Marx analisa a economia política burguesa a partir de um conceito chave, o de trabalho alienado.

        O homem, ao reproduzir-se fisicamente na natureza através da transformação da  mesma pelo trabalho, reflete a si próprio no mundo objetivo. Sua individualidade é refletida pela obra que ele mesmo criou. Como já dissemos, a atividade produtiva é social, ou seja, pertence à vida genérica do homem, que ao representar-se, representa também a humanidade. O trabalho alienado tira do homem o fruto de sua produção, tirando assim, ao mesmo tempo, a sua vida genérica. Para Marx, o homem só era capaz de realizar suas forças intelectuais e físicas interagindo com o ambiente. O homem depende da natureza para crescer e conseguir sustento. Sua consciência não pode ser fechada, subjetiva, mas sim ser moldada pela realidade natural e social. O trabalho alienado transforma o homem estranho a si mesmo e ao ambiente onde vive. Segundo a concepção etimológica, alienatus é aquele que não se pertence, aquele que pertence a outro. O homem, alienado-se no seu trabalho, na sua vida genérica, aliena-se também dos outros homens. Marx continua dizendo que o ser estranho a quem pertence o trabalho alienado tem de ser algo real, objetivo. Dessa forma, não é nem à natureza nem aos deuses que ele pertence, mas sim ao próprio homem. O produto do trabalho pertence a alguém distinto do trabalhador, ou seja o capitalista. O trabalho é sofrimento para alguns, enquanto suas condições o afastam de si e da natureza, mas é fruto de gozo para aquele que desfruta dos produtos.

        Portanto, a propriedade privada é fruto do trabalho alienado. A propriedade privada, para Marx, é conseqüência e causa do trabalho alienado, da mesma forma que o salário também é conseqüência deste. Marx chegou ao conceito de trabalho alienado a partir da economia política, que “tudo atribui 15 à propriedade privada”  e nada ao trabalho. Ela apenas formulou as leis do trabalho alienado, e não denunciou o seu caráter hostil à natureza humana, escravizador, que transforma o homem em um instrumento da riqueza de outros. Marx, depois de explicitar as implicações do trabalho alienado, parte para a explicação da propriedade privada.

        Essa importância que Marx dá às condições materiais da transformação humana, esta aplicação da economia à filosofia levariam Marx a romper com o idealismo da esquerda hegeliana. A famosa afirmação de Marx, no Manifesto Comunista, de que a história de toda sociedade até hoje tem sido a história da luta de classes, está ligado à maturidade de seu pensamento que encontra marco definitivo no ano de 1845, com a publicação de A Ideologia Alemã, em co-autoria com seu amigo, Engels. Neste livro estão lançados a base do materialismo histórico e do materialismo dialético, que ficaram sendo conhecidos como uma designação da teoria marxista, apesar de Marx não usar exatamente estas expressões, mas sim “concepção materialista da história”. Nas teses sobre Feuerbach, Marx dirige àquele que havia sido seu inspirador, como já vimos, críticas duras. O centro dessa crítica é fundamentado pela economia, pela atividade humana produtiva, pela política. O motor da história não pode ser, de modo algum, as idéias ou as teorias, mas sim a atividade humana objetiva – o trabalho.
Os filósofos sempre separaram o mundo intelectivo do mundo cotidiano, prosaico. De fato, há essa diferença entre o ócio e o negócio. O cultivo do espírito, necessário para as atividades intelectuais, não se realiza com o trabalho obrigatório. Os filósofos, muitas vezes propuseram uma linha de ação prática, como Bacon e Descartes, mas a filosofia, na contemporaneidade, perdeu muito espaço para a ciência, às vezes ocupando até um papel adjunto, de fundamentação da ciência. Isto se deve sobretudo à aplicação prática da ciência. A ciência é o saber racional do mundo, mas suas descobertas tem valor prático sobretudo por direcionar melhor a transformação da natureza em produtos utilizáveis pelo homem.

        Marx critica os filósofos por desprezarem a praxis e se preocuparem apenas com a teoria. A praxis  estava sendo entendida até então como uma atividade suja e mundana, e não estava sendo respeitado seu caráter revolucionário. Marx ataca Feuerbach por limitar sua crítica da auto-alienação  ao terreno religioso, divino.  O fundamento terreno que projeta nas nuvens um reino autônomo deve ser explicado pela decadência e contradições presentes no próprio processo evolutivo terreno. Por isso, a realidade terrena deve ser revolucionada. O fato de que as relações sociais são todas práticas e sensíveis leva à revelação que o indivíduo abstrato, sozinho, é apenas social.  A XI tese adquire importância como crítica à filosofia, especialmente ao Idealismo alemão, que representavam o mundo invertido, do invisível colocado acima do sensível, da idéia colocada acima da matéria.
        Marx critica, em Sobre a Questão Judaica, esta inversão. Vejamos este famoso trecho:
        “O fundamento da crítica religiosa é o seguinte: o homem faz a religião, a religião não faz o homem (…). O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. (…) Portanto, a luta contra a religião é indiretamente a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo perverso, e a alma das circunstâncias desalmadas. É o ópio do povo”. 16

        Nas teses sobre Feuerbach, Marx afirma que o sentimento religioso é um produto social relacionado a uma forma determinada de sociedade. Para ele, a fonte da deficiência religiosa deveria ser buscada na deficiência do próprio Estado. Esta deficiência deveria ser suprimida com a tomada de consciência do homem como um ser espécie, num coletivismo que mudava o homem individual, abstrato. Daí advém a divisão da sociedade em classes sociais. Marx lembra que o homem não é apenas um produto das condições materiais, pois a interação com a natureza possui um aspecto criativo e subjetivo. As circunstâncias são feitas pelos homens, e o próprio educador deve ser educado. Mas sua crítica ao idealismo é cortante, como se vê no Prefácio à Economia Política, onde Marx diz: “O processo de vida material condiciona o processo de vida social, política e individual em geral. Não é a consciência dos homens que lhes determina o ser, mas pelo contrário, é o seu ser social que lhes determina a consciência.”17   E em A ideologia Alemã afirma que não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. 18

        O termo ideologia foi criado por Destutt de Tracy, que fazia parte de um grupo chama de ideólogos franceses. Nesse grupo constam também nomes como Cabanis, Volney, Garat, Daunou. A ideologia é a ciência que tem por objeto de estudo as idéias, suas origens,  formação e relação com os signos. Posteriormente, em um sentido mais amplo passou a significar um sistema de idéias que refletem uma visão de mundo e orientam uma ação política. Marx, como fez com o conceito de alienação, toma o termo num sentido próprio, dando-lhe conotação pejorativa.

        Marx inicia A ideologia Alemã ironizando os pensadores recentes hegelianos por acharem que uma revolução no plano do pensamento foi mais importante que a Revolução Francesa. A Alemanha estava atrasada em relação aos outros países da Europa, como a França e a Inglaterra. A Inglaterra era  o pais mais industrializado, e foi em sua vivência na França que Marx se tornou verdadeiramente um comunista. A Alemanha sofreu um processo de unificação tardio com Bismarck, e nela ainda estavam presentes certos elementos feudais. Para Marx, a filosofia alemã estava ainda nitidamente ligada ao sistema hegeliano, de forma que toda a crítica que se empreendeu ao hegelianismo não a tornava independente e superadora de Hegel. Esta crítica é dirigida especialmente a Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner. Apesar das frases destes pensadores que supostamente abalaram o mundo, Marx denuncia seu caráter conservador. Para Marx, a chave estava na conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã.

        A mudança do modo de produção artesanal, feudal, para o modo de produção capitalista acarretou uma série de exigências dos novos grupos comerciais, como por exemplo a livre competição econômica. Os valores entendidos como representações da realidade ignoravam a base de toda ideologia, a existência no plano material, sendo entendidos como válidos para toda a humanidade, quando na verdade eram pertencentes apenas a uma classe determinada, geralmente a dominante.

        O grau de avanço de um país, portanto, é determinado pelas relações de trabalho e pelas formas de produção. Marx aplica então esta concepção à história, afirmando que cada nova fase da divisão de trabalho acarreta uma mudança nas relações entre os indivíduos. Assim, inicia uma teoria da história, onde o homem ativo – aquele que produz as condições materiais de existência- teria evoluído em diferentes estágios, desde os tempos de caçador-coletor. Apresenta três formas de propriedade: a tribal, a comunal e a estamental. A quarta forma de propriedade estaria ainda acontecendo: a propriedade burguesa. Como observa no Manifesto Comunista, a burguesia revolucionou totalmente a economia e as formas de produção, gerando um novo tipo de mercadoria industrial. A burguesia teria acabado com antigas tradições da cultura popular, de formas de relacionamento. Marx inclusive chega a afirmar que a burguesia transformou as relações familiares em relações monetárias.
Com a Revolução Industrial e a produção em escala, os países mais adiantados conseguiram acumular uma riqueza jamais vista. O homem, ao satisfazer suas primeiras necessidades, chega inevitavelmente a novas necessidades. Para satisfazer suas novas necessidades, precisava transformar os meios de produção, que estariam constantemente se revolucionando.

A questão se houve ou não um corte no pensamento do Marx maduro para o jovem Marx é respondida pelo próprio com sua afirmação de que ajustara suas contas com o a consciência filosófica de outrora. Iniciar a Ideologia alemão  com a crítica aos jovens hegelianos, grupo ao qual fez parte, marca seu avanço em direção a uma visão própria. Como mostramos, seu vocabulário, e sua própria consciência de si anteriores eram feuerbachianos ou inspirados em outras filosofia. Foi cm sua análise do sistema capitalista e seu apego à Economia Política que Marx traçou profundamente seu marco na história. O socialismo, ao qual só aderiu tardiamente, adquiriu com ele status científico. É na relação de O Capital com as outras obras que podemos identificar este rompimento de pensamento. Resta perguntar se foi um corte político ou epistemológico. Louis Althusser foi criticado por estabelecer “fases” para Marx, desde sua juventude como romântico em Bonn até o intelectual máximo da esquerda. Althusser afirma, em Análise Crítica da Teoria Marxista, que houve uma “cesura epistemológica” situada na Ideologia alemã. Nesta obra estão novos conceitos em profusão, que ainda seriam desenvolvidos e que mostram sem nenhuma duvida que Marx passou a fazer uma nova teoria da história, e uma teoria da ciência. Porém, como em toda transição, sempre encontramos elementos antigos ainda não totalmente superados nas novas realizações. Marx não chegou ao estilo claro e ao mesmo tempo erudito de  O capital do nada, mas evoluindo de si mesmo, e arregimentando cada vez mais a filosofia, a ciência, a economia para transformá-las.

        O Primeiro capítulo de O Capital é destinado à análise da mercadoria. A mercadoria é um objeto que satisfaz as necessidades dos homens, e distingue-se por qualidade e quantidade. Uma mercadoria pode ter valor de troca e valor de uso. O valor de uso é real, imediato, determinado pela utilidade. As mercadorias com esse valor diferenciam-se pela qualidade. O valor de troca pode apenas ser diferenciado pela quantidade, pois produtos iguais tem o mesmo valor. Dessa forma x mercadorias a eqüivalem a y mercadorias b. A quantidade de trabalho empregados nestas  mercadorias estabelecem o valor de troca entre elas. Mas a relação entre as mercadorias, entre os produtos, não existe por si só. É a convenção social quem determina o valor de uma mercadoria em relação a outra. Pois foi relacionando-se socialmente que o homem logrou produzi-la. No capitalismo, esta base social da mercadoria aparece como encoberta. A igualdade do esforço humano de produção (trabalho) fica  disfarçada sob a igualdade dos produtos como valores. A mercadoria tem características sociais, na medida em que os homens trabalham uns para os outros. O homem que consegue se manter sozinho foi superado desde a aparição da primeira sociedade, a tribal. Na primeira forma de interação social, a família, já está implícito a dependência dos membros de um grupo entre si. Um ferreiro que só mexe com ferro necessita de pão. E o padeiro que só mexe com pão necessita de ferro. Esta característica da produção foi levado ao máximo no sistema capitalista, onde o trabalho é especializado e há padrões universais para o intercâmbio de trabalhos e de mercadoria, como o valor do ouro e do dinheiro.

        O mistério da mercadoria consiste no encobrimento das características sociais dos produtos do trabalho humano, que aparecem como características materiais e pertencentes ao próprio objeto. Em última análise, o valor de uma coisa é atribuído pelo sujeito. Uma muleta não teria muito valor para atleta saudável, mas seria indispensável para um manco. Um produto nada mais é do que a natureza transformada. Uma muleta é madeira transformada, medida, trabalhada. Mas não deixa de ser mera madeira, se olhada objetivamente. No entanto, esta mesma madeira é transformada em mercadoria. O homem, um ser físico estabelece uma relação com a madeira, outra coisa física. Mas o valor da madeira enquanto mercadoria nada tem de físico. Ou como afirma Marx, “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre as coisas.”19  A isto Marx chama de fetichismo da mercadoria. As coisas, tomadas num ponto objetivo, tem apenas existência material. É no plano físico onde acontecem as coisas, o trabalho, a transformação. No entanto, é o homem que, abstraindo e convencionado com outros homens através da linguagem, transforma o objeto em uma mercadoria de valor pessoal, subjetivo. E com a troca de mercadoria, estabelece-se um outro tipo de valor.

        Os trabalhos pessoais e privados pertencem ao todo do trabalho social, e é a relação social entre os indivíduos que cria a relação entre os trabalhos. Os homens, inconscientemente, igualam os diferentes tipos de trabalho e produtos numa qualidade comum do trabalho humano. Dessa forma, o valor de uma mercadoria é um signo social, que precisa ser decodificado por padrões comportamentais comuns para se efetivarem como valorosos em um sentido específico.
     
  O interessante é notar a relação do conceito de mercadoria com a diferença clássica da filosofia entre a coisa-em-si e a coisa-para-si. Esta distinção problematizada por Kant na forma de aporia, levada ao máximo no Idealismo e colocada sob outra perspectiva pelo Absoluto hegeliano, é um problema filosófico diretamente ligado aos autores que mais influenciaram Marx. Este, por sua vez, aplica-o aos valores do mercado e da economia, sem largar mão de sua posição materialista. Marx, afinal, não nega que as coisas adquirem um valor apenas na perspectiva do sujeito, mas submete esta perspectiva à relações definidas entre os membros do corpo social. Não é o indivíduo sozinho que, em sua percepção estabelece relações determinantes para o modo de se ver a realidade, mas sim as relações sociais entendidas com base em coisas materiais, existentes além da existência individual."

Miguel Lobato Duclós (1978-2015)


NOTAS

1.FEUERBACH, Ludwig, A essência do Cristianismo, página 9. Editora Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução de Serrão, Adriana Veríssimo. Lisboa, Portugal. Voltar
2.Idem, página 22. Voltar
3. XENÓFANES de Colofão,  Tapeçarias, V, 110 e Tapeçarias, VII, 22, in Pré-Socráticos, página 70. Coleção Os Pensadores.  Tradução de Padro,  Anna L. A. de . Editora Nova Cultural. São Paulo, 1996.  Voltar
4.  NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, página 10. Tradução de Fonseca, Eduardo Nunes. Coleção Ciências Sociais e Filosofia. Editora Hemus. São Paulo, SP.
5.  NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, página 10. Tradução de Pugliesi, Márcio e Bini, Edson. Editora Hemus. São Paulo, SP, 1984. Voltar
6.  NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, página 26. Voltar
7.MARX, Karl, Manuscritos Económico-Filosóficos., página 159. Tradução de Morão, Artur. Editora Edições 70. Lisboa, Portugal. Voltar
8. ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista, página 36. Tradução de Lindoso, Dirceu. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967. Voltar
9. O mesmo autor sugere uma classificação para a obra de Marx, que teria “fases”:
    1840-1844 Obras da Juventude
    1845 – Obras da cesura epistemológica – Marx rompe com Feuerbach e Hegel e funda sua própria doutrina, o materialismo histórico.
    1845- 1857 – Obras da maturação
    1857 – 1883 – obras de maturidade Voltar
10. MARX, Karl, Manuscritos Económicos-Filosóficos, página 160. Voltar
11.Idem, página 162. Voltar
12. Idem, página 164. Voltar
13. Ver nota 1. Voltar
14. ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista, página 136. Voltar
15.MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos, página 169. Voltar
16. MARX, Karl, Sobre a Questão Judaica. apud McLELLAN, David, As Idéias de Marx, página 40. Tradução de Neto, Aldo Bocchini. Editora Cultrix. São Paulo,1977. Voltar
17.  Idem, página 50. Voltar
18. MARX, Karl, A Ideologia Alemã, página 37. Tradução de Bruni, José Carlos e Nogueira, Marco Aurélio. Livraria e Editora Ciências Humanas. São Paulo, 1982. Voltar
19.  MARX, Karl, O Capital, página 81. Tradução de Sant´Anna, Reginaldo. Difel Editorial S.A. São Paulo, 1982. Voltar


     BIBLIOGRAFIA

      Além da bibliografia citada nas notas, usou-se ainda:
1. GIANNOTTI, José Arthur. Notas sobre a categoria “modo de produção” para uso e abuso dos sociólogos in Filosofia Miúda e demais aventuras. Editora Brasiliene, 1985.
2. JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1990.
3. LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Diversos tradutores. Editora Martins Fontes.  São Paulo, 1996.