Na sua obra universitária, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) era estimulado a aproximar
autores fundamentais em seus conceitos e ambientes históricos. Fez isso em
vários textos, como neste aqui, em que estabelece os parâmetros do convívio
entre Maquiavel e Tomas More. Acompanhá-lo é um privilégio, para o bem do
entendimento e do conhecimento. Essa é a missão dos pensadores, os que não
fogem da responsabilidade de mergulhar e compartilhar tudo o que estudam.
São textos que ficariam confinados à universidade, não fosse
seu pioneirismo que colocar no ar tudo o que aprendia. É um acervo muito
intenso e importante para não obter o passaporte para a liberdade. E essa
liberdade Miguel trabalhou arduamente por vinte anos, remando contra a corrente
dos que preferiam manter o isolamento da tradição numa época que clamava pelo
abraço coletivo da cultura universal. Por esse pioneirismo, e pela seriedade da
sua obra, Miguel Lobato Duclós tem o lugar garantido entre as pessoas que
marcam o seu tempo de forma definitiva.
“THOMAS MORE E MAQUIAVEL- TEORIA SOCIAL
E POLÍTICA NO RENASCIMENTO”
POR MIGUEL DUCLÓS
Trabalho originalmente feito para a cadeira de Introdução à
Filosofia I– professor Renato Janine Ribeiro
http://www.consciencia.org/maquiavel_more.shtml
INTRODUÇÃO
Desde a queda do Império Romano, da Era patrística até o
Renascimento, a Igreja católica estendeu sua influência por todo o conjunto de
relações sociais e políticas que caracterizaram a Europa medieval. A sociedade
desse longo período, tinha sua economia organizada pelo feudalismo, onde o
senhor feudal exercia sua suserania. Essa economia era essencialmente agrícola,
e os servos possuíam o direito do usufruto sobre tratos da terra, sendo
permitido a eles cultivá-la em troca do pagamento de rendas ao senhorio. A
propriedade privada não era plena, pois os senhores nobres não tinham o direito
de alienar sua propriedade, segundo a instituição de Morgadio. Politicamente, o
Estado era descentralizado. Não havia um Estado organizado, e os interesses
políticos se confundiam com os interesses particulares. A Igreja passa a
acumular o poder temporal e espiritual, e chegou a ter posse de cerca de um
terço das terras da Europa. O clero é a principal ordem, e sua principal função
é rezar. A segunda ordem é formada pela nobreza, e finalmente vem os que
trabalham, a terceira ordem.
Notável é o trabalho de monges, que juntamente com os
árabes, preservaram grande parte dos escritos clássicos da antigüidade. A
filosofia escolástica, fundada por Santo Anselmo, tem como principal
representante Santo Tomás de Aquino. Esses padres cristãos desprenderam um
grande esforço em conciliar a fé com a razão, a teologia com a filosofia grega,
notavelmente de Platão e Aristóteles. A vida medieval era essencialmente
cíclica, contemplativa. Isso parecia estar mais de acordo com a vida regida por
preceitos religiosos, de adoração ao Deus todo poderoso. Nesse ponto, temos a
contraposição entre o ócio e sua negação, o negócio. Essa diferença ia ocupar
um papel de destaque no final da Idade Média, compreendido no século XIV,
quando os nascentes burgueses discutiriam com alguns humanistas qual era a vida
mais nobre a ser seguida. As cidades, apesar de diminuídas durante a Idade
Média, devido à intensa agricultura, permaneceram vivas. Nelas predominava o
trabalho corporativo. De fato, na sociedade medieval, um indivíduo não podia
ser compreendido fora da sua condição na esfera social. Nos burgos ou cidades
que o poder passou a mudar de mãos.
Esse breve resumo, tão breve que chega a ser um crime de lesa-história,
tem como objetivo contextualizar o aparecimento da tradição humanista, a qual
pertencem os dois autores que vamos examinar: Thomas More e Maquiavel. Os
humanistas passam a questionar o teocentrismo, até então predominante.
Acreditavam que o homem devia ser o centro das investigações filosóficas por
ser ele o único ser capaz de conhecer. Os humanistas achavam que no período que
compreende a Idade Média, acontecera um retrocesso, porque a humanidade se
separara do modelo antigo. Propõe então, a volta ao modelo clássico (grego e
latino), uma antropocentrização da arte e das ciências. Com os aparatos
tecnológicos que surgiram na época de nossos autores, (tais como e bússola e a
pólvora) a antiga visão do mundo já não atendia mais às exigências, a religião
em decadência precisava ser repensada. O mundo acordava de seu sono. O homem
clamava pelo domínio sobre a natureza.
O Renascimento é um período que compreende o fim da Idade
Média e o Início da Idade Moderna, entre os séculos XIV e XVI, e tem alcance em
diversos campos da sociedade, do saber e da arte. Por causa disso, muitos
estudiosos o classifica como um período de transição, não mais medieval, mas
ainda não moderno. Autores recentes como Michel Foucault, no entanto, ampliaram
o valor do Renascimento sustentando que ele constitui um sistema completo.
MAQUIAVEL
Os humanistas resgataram o conceito romano de studia
humanitatis. Como afirma Skinner,1. os humanistas italianos ensinavam o latim,
a retórica, os estilistas clássicos, além de história antiga e filosofia moral.
Maquiavel foi formado nesses ensinamentos. Embora preferisse o italiano
florentino para escrever suas obras, sabia muito bem o latim, e os títulos dos
capítulos de O Príncipe são escritos nessa língua. Como adverte Skinner,2 é um
erro reincidente querer separar Maquiavel de outros pensadores humanistas
italianos da mesma época. Afinal, quando O Príncipe fora lançado, já existiam
idéias como as propagadas nos livros. Acreditavam muitos humanistas, que o
exército não deveria ser mercenário e que a virtu é a única força capaz de
vencer a força da fortuna, deusa romana (e pagã) da sorte e do acaso, capaz de
controlar o destino dos homens.
Ora, lembramos bem de como Maquiavel dava ênfase à
importância de um reino ter exército próprio, do treinamento militar dos
cidadãos, que devem ser armados para ficarem dependentes e não desconfiados do
Estado. Afinal, todo Estado precisa de boas leis e boas armas. Lembramos também
de como ele acreditava ser necessário, principalmente ao governante cultivar a
virtu, e tratar a fortuna como uma mulher, que se deixa seduzir pelos jovens
audaciosos. A diferença para Maquiavel de outras obras de aconselhamento de
príncipes, é que ele separa a virtu das virtudes no sentido platônico e
cristão. Maquiavel via a Igreja também como uma coisa política, e admirava os
papas armados que souberam unificar o poder do Estado. Mas se distancia de todo
ideal de bom governante católico para defender a necessidade de o príncipe ter
autonomia em suas decisões e poder agir de acordo com as circunstâncias para
manter a Unidade do Estado. Vale notar que estava escrevendo contra a
devastação da Itália pelos Bárbaros, Itália essa que estava enfraquecida e
dividida em diferentes cidades-estado.
Ao separar a religião da política, transformando a última em
uma ciência, que Maquiavel adquiriu o status de amoral por seus inimigos. Ele
desmantela a validade das virtudes cristãs no governo, tais como a liberalidade
e piedade. Maquiavel modifica a visão do que deve ser um bom governante. Como é
comum ocorrer antes da Revolução Francesa, o governante é colocado como um
adulto ativo, e o povo como um infantil espectador dos assuntos políticos. O
governante tem pleno direito de mentir, enganar, viver para a guerra, eliminar
os mais poderosos que poderiam vir a ameaçar seu governo, deve ser mais temido
do que amado e assim por diante. No entanto, não deve pôr seu interesse
particular acima do Estado. Príncipe e súditos são vistos como um corpo
complementar, em que é necessário ser um para se conhecer o outro. Também, para
não despertar ódio, o Príncipe não deve cometer abusos, tais como seduzir as
mulheres dos súditos.
Maquiavel cita uma série de qualidades negativas e
positivas, e reconhece ser impossível para o príncipe ter só as positivas. Isso
se deve ao fato de ele reconhecer ser a natureza humana imprestável, capaz dos
maiores vitupérios e crueldades por um pouco de dinheiro ou fama. Portanto,
vimos porque Maquiavel trouxe a teoria política à realidade prática,
afastando-se do modelo medieval. citando inúmeros exemplos históricos para
validar seus argumentos. E se insurgiu contra idéia medieval de justitia,
defendendo uma ação eficaz.
MORE
Thomas More foi outro humanista, amigo do maior deles,
Erasmo, que no entanto difere muito de Maquiavel. Homem de grande influência e
cultura em sua época, era como Erasmo, um cristão. Mas adepto do verdadeiro
cristianismo, aquele que existiu em tempos remotos e foi se deteriorando até se
tornar não mais espiritual e humilde, mas mercenário, político e suntuoso. No
início do século XVI, época em que viveu More, a Igreja tinha alcançado níveis
absurdos de exigências e deturpação da mensagem cristã original.
O sistema de “loteamento” do céu funcionava fortemente, e a
autoridade dos eclesiásticos era de tal forma exagerada, que esses abusos
acabaram por gerar as reformas protestantes. No livro A Utopia, percebemos o
quanto a ironia de More ataca o luxo desnecessário em que estava envolvida a
Igreja. Na figura de Rafael Hitlodeu, More mostra o quanto a massa de camponeses
tem que trabalhar a mais para sustentar aqueles que nada fazem, como é o caso
de grande parte dos clérigos e dos nobres. Na utopia de More, todos cumprem a
sua parte para que a ilha tenha superabundância de produção. Ainda no tocante à
religião, os sacerdotes utopianos tem verdadeira autoridade espiritual e o
prazer é tido como um grande bem, que traz a felicidade. O ascetismo na ilha é
uma opção, mas pergunta More: Se o objetivo do asceta é melhorar a vida do mais
próximo, porque não começar pela nossa própria casa e melhorar nossa própria
vida?
A influência de A república, de Platão, outra obra que versa
sobre a sociedade ideal, na utopia de More é notável. A começar pela crítica à
propriedade privada. Tantos os utopianos quantos os habitantes da cidade de
Platão viviam em regime de comum – unidade. A propriedade privada, comum na
Grécia, e recém – ressurgida na época de More, é vista como um empecilho à
prática da virtude humana, ou do verdadeiro motivo para o qual o homem foi
criado. Para More, o homem deveria viver de acordo com a natureza, daí seu
esforço de defender uma nova civilização. Muitas vezes, a crítica social de A
Utopia parece estar endereçada à Inglaterra, lugar onde More nasceu. O
principal problema da civilização ocidental, para ele era o “monstro
pestilento” do orgulho, que seria o único motivo de os homens não terem uma
sociedade igual a de Utopia. A crença em um além-mundo é compartilhada tanto
por More quanto por Platão, e essa crença serve de sustentação para se levar
uma vida espiritualizada na Terra e garantir a validade de um esquema social
planejado e muitas vezes imposto.
A religião utopiana tem diversos pontos parecidos com a
cristã. Rafael cita expressamente sua admiração por Platão e por alguns
conceitos estóicos, mas achava impossível que a mente deturpada dos governantes
ocidentais pudesse alcançar a maravilha de um tipo de sociedade igualitária,
sem dinheiro nem vaidade. Para Rafael, não há lugar para filósofos nos
conselhos reais. A hierarquia existe em Utopia, mas é diferente da que
conhecemos. Há um grande fluxo de troca de cargos, e os sifograntes, príncipe e
traníboros estão interessados só no bem-estar público. No demais todos são
iguais, numa escala que chega a ameaçar a pluralidade. Cada pessoa em Utopia só
pode ser entendida por meio da sociedade. De fato a ilha inteira é como uma
grande família, onde todos se vigiam mutuamente. Podemos ver nisso uma volta ao
corporativismo da vida social medieval, acima mencionado. Com o surgimento do
capitalismo, a propriedade privada volta a ter valor efetivo, até mesmo sagrado,
como para Locke, no século XVIII. A tese de que More propunha uma volta ao
passado se baseia principalmente no fato de que o autor defende esses dois
modos de vida, corporativo e sem propriedade privada. Mas se estudarmos More
como um precursor de Marx, perceberemos que não é assim necessariamente.
Na sociedade ideal de Platão, a hierarquia é
consideravelmente mais forte. Há a divisão entre os que trabalham, os que
guardam as cidades de ataques e os que a governam. Todos passam, ao longo de
suas vidas, por testes programados, que determinarão a ascensão ou não na
escala social. A família não existe, e existência da família é inibida. As
relações sexuais são feitas de modo a garantir o mais alto grau de eugenia, e
os filhos são tirados dos pais. O modelo da República era a sociedade
espartana. Nesse ponto, a teoria social de More difere totalmente. Não só a
ilha de Utopia é uma imensa família, como essa existe de fato. Os casarões são
divididos entre familiares, onde o homem mais velho manda. Os pais são
responsáveis por educar os filhos, e se há excedente de população, um grupo é
selecionado para iniciar uma colônia no continente. O ouro e o modo de vida
estranho ao da ilha é desencorajado desde cedo entre as crianças. Mas os
utopianos são abertos ao intercâmbio cultural, como se demonstrou com as
visitas de Hitlodeu. Não só eles aprenderam algo da filosofia e ciência
ocidental, como também vemos que muitas das descobertas morais e científicas de
utopia são parecidas com a ocidental.
MORE E MAQUIAVEL
Existem muitas diferenças entre More e Maquiavel no campo de
vista político e social. Maquiavel, por exemplo, considerava o homem mau por
natureza, como já foi dito. More não compartilha essa crença. Para ele o homem
é capaz do verdadeiro bem e de uma vida com virtudes, desde que seja submetido
à educação de leis e costumes justos. Diz More que a Mãe natureza ama a todos
por igual, e deseja ela igual bem estar para todos. A terra é mais que
suficiente para garantir o sustento de todos, e eliminando a mesquinharia, as
disputas e desavenças tão comuns na Itália de Maquiavel, somem por completo.
Maquiavel enobrecia a arte da guerra ao máximo, enquanto More procura evitá-la
a todo custo. Maquiavel aceitava conselheiros sábios do lado do príncipe, More
achava inútil reunir conselheiros e advogados ao redor de si. More era contra
qualquer tipo de crueldade e vício humanos, inclusive a caça, admirada por
Platão, abolida de Utopia. A função de matar animais nessa ilha é relegada a
escravos. O fato de haver essa brusca desigualdade social numa sociedade
pretensamente ideal, dá margem à críticas. Mas devemos lembrar que os Utopianos
são muito nacionalistas, e preferem qualquer um dos seus ao maior dos reis
estrangeiros. Os escravos geralmente são estrangeiros ou criminosos, e muitas
vezes sua ocupação é dignificada. O fato de haver um príncipe em Utopia está
muito mais ligado à necessidade de um controle interno, pois mesmo numa
perfeita organização é natural alguns quererem escapar das leis. E mesmo o
príncipe se chama Ademos, ou seja, sem povo.
CONCLUSÃO
Procurei mostrar nesse trabalho as principais diferenças
entre More e Maquiavel, além de procurar as evidências de que ambos não são
autores a parte, mas estão ligados à sua época e ao movimento humanista. Nesse
sentido, vimos porque se pode dizer que ambos “acertam contas” com o passado
medieval, mas não totalmente de forma original ou sui generis. O Príncipe, de
Maquiavel pertence ao gênero de espelho do príncipe, livros de conselhos para
as monarquias, que ressurgiam com força. A Utopia de More pertence ao gênero
das teorias sobre sociedade ideal, como é o caso de A república de Platão e A
Cidade do Sol, de Campanella.
Miguel Lobato Duclós (1978-2015), leia também no link:
NOTAS
1. Maquiavel, Quentin Skinner, pag 15. Editora Brasiliense,
1988.
2 .Fundações do pensamento político moderno, Quentin
Skinner, Cap. 5.
BIBLIOGRAFIA
1. Dicionário Enciclopédico Ilustrado, volume 3. Editora
Círculo do livro, 1977.
2. Maquiavel, Niccolo. O Príncipe ,editora Cultrix, São
Paulo. Tradução de Antonio D’elia.
3. Skkiner, Quentin. Fundações do pensamento político
moderno. Companhia das Letras.
4. Quentin Skinner, Maquiavel, Editora Brasiliense, 1988
5. More, Thomas A Utopia, editora Marins Fontes. São Paulo,
1993.
6. Platão, A República. Fundação Calouste Goulbekian,
Portugal, 1989. Tradução de Maria Inês da Rocha.
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