Nietzsche
virou febre por algum tempo nas redes sociais e na universidade, sem que, em
geral, se atentasse para as nuances do pensamento
paradoxal desse grande filósofo. Neste texto, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) dribla as facilidades do tema
e pega frase a frase de um parágrafo do autor e esmiúça detalhadamente cada
aspecto sugerido ou implícito nas palavras utilizadas. É um jogo complexo, mas
sempre claro e límpido, como era o estilo de Miguel Lobato Duclós, um filósofo
que não recusava nenhum assunto e a tudo abordou com sua lucidez e sua
determinação.
É mais um
exemplar de sua importante obra autoral, desenvolvida desde o início da
mocidade e que atingiu a maioridade antes de ter completado 30 anos. E que, com
sua despedida aos 37 anos, fica marcada eternamente como uma referência
filosófica contemporânea, plenamente identificada com os clássicos. Transcende
modismos pela seriedade e transparência de sua paciente e árdua busca de
conhecimento.
http://www.consciencia.org/nietzsche3.shtml
“ANÁLISE DO PARÁGRAFO
22
DE PARA ALÉM
DE BEM E MAL,
DE FRIEDRICH
NIETZSCHE”
POR MIGUEL
DUCLÓS
O parágrafo
em questão é citado por partes.
(…) Perdoem este velho
filólogo, (…)
Aqui o autor
faz referência à sua juventude, quando foi professor precoce de filologia na
Basiléia, onde ministrava cursos sobre a Grécia e filologia clássica. Nietzsche
teve uma formação severa, desde o tradicional colégio de Pforta até o tempo na
Universidade em que adquiriu uma notável erudição, consultando até cem livros
por dia. É assim que entendo a expressão "velho filólogo". Começou
muito cedo a exercer esta profissão, mas não é de forma algum velho à época da
publicação de Para Além de Bem e Mal (85-86), quando era um jovem senhor de 41
anos. A filologia será também importantíssima na obra filosófica do autor –
como este próprio aforismo mostra mais adiante -, sobretudo na construção do
método genealógico.
O
"perdoem" faz lembrar uma postura irônica que o autor adota no início
do aforismo. Aqui fala também o ermitão, que tem uma postura diferente,
construída a partir de seus estudos e meditações solitários, mas que levanta a
sua voz para falar contra uma postura firmemente aceita na sociedade científica
em sua época, oferecendo uma visão que, entretanto, não expressa a sua
meditação mais íntima, pois, há algo de inexprimível no que a solidão revela.
(…) que não pode
resistir à maldade de pôr o dedo sobre artes de interpretação ruins: (…)
A ironia prossegue.
Àquele "perdoem" tão cristão do primeiro trecho, segue-se a afirmação
de que o que o autor irá fazer como é uma "maldade". Com isso o autor
prepara o terreno para desbancar aquilo que a ciência física moderna faz
atualmente, e já prevê uma possível reação negativa de seus adversários.
Temos a
introdução de um conceito, o de artes-de-interpretação (Kunst der Auslegung?),
cuja totalidade, evidentemente, me escapa. No aforismo inteiro parece estar
presente aquela máxima de que "não existem fatos, somente
interpretações". A interpretação é uma atividade que expressa a força
criadora de quem interpreta, um movimento que não se conclui, mas se prolonga
infinitamente, aonde se pode provar tanto uma coisa quanto o seu contrário,
sendo ambas – como o autor coloca mais abaixo – a produção de uma vontade que é
doadora de sentidos. "Qualquer coisa pode ser verdade, desde que
pronunciada com a entonação certa", poder-se-ia dizer zombeteiramente.
O autor já
passa da ironia à crítica, ao dizer que irá falar de artes-de-interpretação
ruins, ou seja, rotula a atividade do cientista físico segundo o seu próprio
conceito onde tudo pode ser visto como interpretação, e produz uma valoração
negativa, segundo uma "perspectiva avaliadora". Vejamos a natureza desta
crítica.
(…) mas aquela
"legalidade da natureza", de que vós físicos falais com tanto
orgulho, como se … – (…)
Confirmado,
o autor elege o alvo do martelo: trata-se dos físicos de sua época em geral. A
ironia prossegue ao apontar o "orgulho" com que os físicos falam de
certo aspecto de sua doutrina. Entendo isso como ironia uma vez que as ciências
naturais pretendem para si uma certa "objetividade", baseada na
repetição e comprovação de experiências e resultados. A "maldade"
então se revela, o autor pretende retirar dos físicos uma certeza que é de
certa forma o orgulho ingênuo de seu ofício.
As aspas em
"legalidade da natureza" também indicam ser este um conceito próprio
da física, talvez também se atinja aí o positivismo, ou um determinismo. De
qualquer maneira, o conceito passa a noção de um direito baseado na
experiência, na impessoalidade da lei natural, universal a todos, que, portanto
devem a ela se conformar.
Não entendi
a função do "como se …" . A frase fica inconclusiva.
(…) só subsiste graças
a vossa interpretação e "filologia" ruim – (…)
Confirma-se
que o autor vê os conceitos físicos segundo o seu próprio conceito de
artes-de-interpretação. Só temos interpretações, diz o filósofo. É necessária
ainda a construção de uma "arte" de interpretar, de um esmerar-se e
de uma técnica, portanto. Já há aqui uma contraposição entre uma postura
privilegiada, superior, e outra mais disseminada. A ligação entre interpretação
e filologia se faz novamente sentir, e podemos supor que Nietzsche, como o
"velho filólogo" é quem possui uma arte de interpretação superior, ou
pelo menos a anuncia para o porvir.
Ao meu ver
está implícita também uma postura antidogmática na afirmação de que a
"legalidade da natureza só subsiste etc", se tomarmos o dogmatismo no
seu significado original – filosófico e não religioso – como uma opinião
admitida e repassada por uma escola sem que passe pelo crivo da crítica, ou de
um exame mais detalhado.
(…) não é nenhum estado
de coisas, nenhum texto, (…)
O martelo
fala, a postura é claramente afirmativa, abandona-se a ironia. O estado de
coisas é algo de que fala a física clássica, uma determinação de forças segundo
leis do universo, que, se conhecidas, podem levar o homem a conhecer o
funcionamento da natureza e agir de acordo. A pretensão de se alcançar tais
leis é negada, e criticada como ingênua como veremos a seguir.
A colocação
do termo "texto" entre aspas é curiosa, não creio, mais uma vez, que
compreendi bem. Mais adiante o autor reforça a oposição entre texto e
interpretação; talvez o sentido dado seja o de "palavras que se citam para
provar qualquer doutrina", ou a pretensão da física de que se pode ler a
natureza como a um texto.
(…) mas somente um
arranjo ingenuamente humanitário e uma distorção de sentido, (…)
O
"somente" reforça o objetivo avassalador da crítica, anteriormente
citado, uma vez que associa um caráter diminutivo a algo orgulhosamente
sustentado. A postura humanitária é também tachada de ingênua. Isso remete à
postura refletida do ermitão, do Zaratustra que medita dez anos na montanha
(embora Zaratustra desça da montanha para discursar, justamente por "amor
aos homens"), em contraposição ao senso comum. Mesmo a física pode
pertencer a um populacho, se pretende que a lei da natureza seja comum a todos
e ignora o que é "senhor de si ou privilegiado". Este arranjo
"humanitário" é oposto, também, àquela lei universal independente,
factual, de que os físicos se orgulham. A distorção de sentido é apontada pela
avaliação filológica, que no trecho anterior já afirmava a interpretação ruim.
(…) com que dais plena
satisfação aos instintos democráticos da alma moderna! (…)
Uma ligação
entre modernidade, democracia e humanitarismo, como coisas que interessam a
todo o gênero humano, é associada com a lei natural a qual todos estão sujeitos
segundo a física. Essa doutrina é determinada no tempo, como uma postura típica
de uma época passageira. Em épocas antigas esse "conhecimento
científico" não seria possível, e pode certamente ser superado em épocas futuras,
como aliás, a teoria das mudanças de paradigmas afirma. O conhecimento, como
diz o belo trecho §1 de "Sobre verdade e mentira no sentido
extra-moral", gerou o minuto mais mentiroso e soberbo da história do
universo cintilante.
Há uma
crítica sagaz ao esclarecimento ilustrado, racional, que gerou a ciência
moderna, uma vez se nega a ela a certeza racional e a determina como fruto de
instintos não-racionais. A crítica fica ainda mais aguda se considerarmos que a
"igualdade, liberdade e fraternidade" que apregoou a revolução
francesa derivou, de certa forma, do esclarecimento iluminista.
(…) "Por toda
parte igualdade diante da lei – nisto a natureza não está de outro modo nem
melhor do que nós": (…)
Com essa
"citação" reforça-se o que se disse antes. O homem espelha na
natureza aquilo que vê em sua própria natureza e sociedade. Uma crítica algo
feurbachiana, atéia, contra a arrogância do ser humano, ínfimo diante da
imensidão do universo, e que não tem os modos cavalheirescos para conquistar a
verdade, essa dama que costuma se velar, que ama somente um guerreiro.
(…) um maneiroso
pensamento oculto, em que mais uma vez está disfarçada a plebéia hostilidade
contra tudo o que é privilegiado e senhor de si, do mesmo modo que um segundo e
mais refinado ateísmo. (…)
Um
desmascaramento. A doutrina dos físicos é algo que é expresso exteriormente com
vistas à universalidade, mas que apenas oculta um ressentimento de pessoas
inferiores contra o que é nobre ou privilegiado, contra o que a si mesmo
comanda, o "homem superior", – que não é subjugado por uma moral ou
que participa da mesma lei que comanda o populacho – mas sim que afasta de si
com apenas uma inflexão todo ressentimento, toda mágoa, e pode viver,
zombeteiro, alegremente e plenamente. Este desmascaramento faz parte do
pensamento do autor, que afirma toda filosofia ser filosofia de fachada, mesmo
a sua própria filosofia (como se vê no §289 do mesmo livro). À filologia, se
une, talvez, uma espécie de psicologia, já que o autor identifica um padrão – a
hostilidade contra tudo o que é privilegiado – que determina um comportamento e
a criação de pensamentos, doutrinas ou conceitos que apenas disfarçam esse
aspecto negativo ou derivam dele. Isso será mais bem desenvolvido no próximo
livro de Nietzsche, "Para uma genealogia da Moral", nos anos
seguintes. Contudo, o alvo lá será o desmascaramento da moral religiosa, do bem
e mal como algo divino ou absoluto. Aqui se vê que Nietzsche não critica
somente a religião, mas usa os mesmos argumentos para atacar a ciência.
A ciência,
pretensamente atéia, não se livrou, contudo, do não-relativismo, de algo
universalmente válido. No campo das experiências e dos fenômenos abandona a
"coisa-em-si" da metafísica ou da religião, mas substitui essa por
sua própria linguagem cifrada, sua interpretação e seus paradigmas, como a lei
da causalidade. Acaba caindo nas mesmas ciladas, acaba empregando o mesmo
ressentimento mal disfarçado do judaico-cristianismo. Poder-se-ia perguntar,
parafraseando o autor: "Seria o homem um equívoco da legalidade da
natureza? Ou a legalidade da natureza um equívoco do homem?". Apesar de
este ateísmo estar agora mais bem adornado com seu alcance científico (e por
isso mais refinado), Nietzsche consegue lhe tirar a pompa e apontar sua
ingenuidade.
(…) "Ni dieu, ni
maítre" – assim quereis vós também: e, por isso, "viva a lei
natural!" – não é verdade? Mas, como foi dito, isso é interpretação, não
texto; (…)
Os físicos,
então, ignoram essa hierarquia natural, expressa em múltiplos níveis e formas.
O ateísmo não admite deus, mas não quer também admitir um senhor, dessa forma
nivela tudo por baixo. Iguala o "homem superior, senhor de si" com o
populacho ressentido, numa manifestação mal disfarçada do instinto democrático
moderno. O "não é verdade?" é uma ironia que, como as outras, engloba
uma crítica severa e profunda, já que, no autor, a "vontade de
potência" se contrapõe à "vontade de verdade" que a parte
predominante da tradição filosófica ocidental dos "sábios dos sábios"
buscou até Nietzsche
(…) e
poderia vir alguém que, com a intenção e a arte de interpretação opostas,
soubesse, na mesma natureza e tendo em vista os mesmos fenômenos, decifrar
precisamente a imposição tiranicamente irreverente e inexorável de
reivindicações de potência – (…)
Este alguém
poderia ser o próprio Nietzsche? Neste trecho há apenas uma estocada, própria
do aforismo, não um combate pontual de toda doutrina física. Embora haja este
projeto futuro da construção dessa doutrina oposta, o próprio aforismo já a
combate inteiramente, pois nega, com suas linhas mestras, o caráter geral sob o
qual se funda essa "legalidade da natureza". O aforismo se afigura
como aspecto da arte-de-interpretação, que manifesta o poder criativo daquele
que interpreta.
Assim como
em outras épocas já se afirmaram peremptoriamente outras "verdades"
acerca do universo, embora o mundo e os fenômenos sejam praticamente o mesmo,
também esta verdade é passageira, ou como se apontou, fruto de sua época. Uma
mudança de interpretação pode implicar no inteiramente oposto do que é aceito.
O autor,
porém, já dá mostras de sua própria arte-de-interpretação e coloca, na figura
desse "alguém", a sua visão. A potência tem um caráter biológico, a
função da vida é a potência, dessa forma o conhecimento é entendido como uma
reivindicação da vontade de potência. Aquilo que os físicos interpretam como
lei natural, nada mais é, portanto, do que máscara e uma busca de sentido –
ainda que distorcido – feita por uma interpretação que expressa reivindicações
de potência. Vejamos mais abaixo o que o autor nos conta sobre a "Vontade
de Potência".
(…) um intérprete que
vos colocasse diante dos olhos a falta de exceção e a incondicionalidade que há
em toda "vontade de potência", em tal medida que quase toda palavra,
mesmo a palavra "tirania", se mostrasse, no fim das contas,
inutilizável, ou já como metáfora enfraquecedora e atenuante – por demasiado
humana; (…)
O conceito
de vontade de potência é exposto pela primeira vez em "Da Superação de
si" na segunda parte do Zaratustra. Lá já está expressa a vontade de
potência como a verdadeira força que impele os filósofos a buscar a verdade, a
falar de bem e mal. Na busca de existência, de sentido, fala mais alto a
vontade de potência, pois o que existe não pode querer vir ainda à existência.
Este ponto atinge diretamente a vontade de existir oude viver, tal como
expressa na filosofia de Schopenhauer.
Se todas as
interpretações são falsas, máscaras, metáforas, aparências, é necessária a
busca de um valor de fora, que extrapole essas interpretações. Tal valor é a
vida, o único valor em si mesmo. Dessa forma, uma arte-de-interpretação que
valorize a vida – e não que negue o mundo – é preferível às interpretações
ressentidas, frutos da hostilidade "contra tudo o que é senhor de
si", que apenas enfraquecem essa busca incessante de poder. A vida, como
único valor válido tem também um caráter necessário e calculável, da mesma
forma que as leis da física, mas não porque seja ela fruto de uma lei ou de um
aspecto de um todo ordenado. Vejamos a parte final do aforismo.
(…) e, que, contudo,
terminasse por afirmas desse mundo o mesmo que vós afirmais, ou seja, que tem
um decurso "necessário" e "calculável", mas não porque nele
reinam leis, mas porque absolutamente faltam as leis, e cada potência, a cada
instante, tira sua última conseqüência. (…)
A vontade é
supremamente ativa. Sempre se manifesta e expande, sem cessar. Não tem uma
finalidade, um objetivo, ou uma lei, mas a cada instante tira de si mesmo sua
última conseqüência, de forma cega. Uma interação incessante de forças, que não
encontra um fim, ou repousa em síntese dialética no absoluto, mas cuja própria
natureza exige um eterno repetir-se.
(…) Posto que também
isto seja somente interpretação – e sereis bastante zelosos para fazer essa
objeção? – ora, tanto melhor! -(…)
O autor
esquiva-se de orma divertida de uma possível refutação com base numa
contradição performática e fornece uma chave de leitura para seus textos ao
informar que o que escreve não corresponde às suas meditações mais íntimas e
profundas. Supera também o velho paradoxo de Epimênides, o cretense, que diz
"Todos os cretenses são mentirosos" e que pode também ser enunciado
por "Essa frase é falsa". Neste paradoxo, se Epimênides fala a
verdade, está errado, se está errado, fala a verdade, e a frase torna-se falsa.
No caso de Nietzsche, se seu aforismo for apenas interpretação, como a
interpretação que critica, ele não perde a validade, mas apenas ganha força.
Miguel Lobato Duclós, leia também no link
…
Nota: Além da tradução de RRTF na coleção
Os Pensadores, Abril Cultural, foram consultados ainda: a tradução de Paulo
César de Souza, um texto de Jorge de Moraes chamado "Da Interpretação:
para uma compreensão da produção de sentidos na filosofia de Friedrich
Nietzsche", e os dicionários filosóficos de André Lalande e José Ferrater
Mora.
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