Filósofo por vocação e formação, Miguel Lobato Duclós
(1978-2015) levava tão a sério seu trabalho que brincava com a imagem
tradicional dos seus pares. Providenciou um cachimbo para curtir com a
percepção que se tem dos pensadores. A alegria é um dos seus atributos,
cultivado à sua maneira, por meio do conhecimento. Ele permeava a leveza com a
profundidade a qual se entregava diariamente.
No texto a seguir, de 10 de fevereiro de 2000, publicado no
seu megasite Consciencia.org, ele aborda um dos assuntos favoritos nas nossas
conversas, a linguagem. Sou um amador nessa área e com Miguel eu aprendia as
implicações de um assunto fundamental da cultura contemporânea. Mas vamos
deixar o filósofo falar, enquanto temos em nossa frente mais uma foto de sua
amada presença. Mantive o original como
foi escrito, inclusive com a palavra recorrente idéia acentuado. Às vezes, é
preciso ler mais de uma vez para captar toda a complexidade desta trama
teórica, mas vale a pena.
“AS TEORIAS DA SIGNIFICAÇÃO SEGUNDO ALSTING
E A CRÍTICA DE HACKING”
MIGUEL DUCLÓS
Trabalho feito originalmente para a cadeira de Filosofia da
Linguagem, professor Armando Manoel de Mora.
“A semântica é a
parte da linguística que trata da relação entre os signos e o real, e do estudo
histórico do sentido das palavras. Os conceitos centrais da semântica são o
significado, a referência e a verdade.
Os linguistas estruturalistas, a partir de Saussurre – que demonstrou que a
língua deveria ser descrita em sua autonomia -
estabeleceram uma distinção rigorosa entre forma e conteúdo. O termo
semântica foi criado por M. Bréal, aparecendo no seu artigo “As leis intelectuais da linguagem, fragmento
da semântica”, já em 1883. Portanto, a aparição de uma disciplina que estuda as
teorias do significado é tardia dentro da história da filosofia. Isto gera
anacronismos, como aponta Hacking, que levam a empregar a expressão “teoria do
significado” tal como a tradição contemporânea define, em autores mais antigos,
como Locke, do século XVII. Isto ocorre sobretudo porque a linguagem –
principal instrumento de um filósofo - sempre foi uma questão de crucial
importância para a filosofia.
No livro X de A
República de Platão, está escrito que “sempre que um determinado número de
indivíduos tem um nome comum, supomos que tenham também uma idéia ou forma
correspondente”. A busca por uma definição universal é uma parte importante da
investigação socrática. Sócrates, por meio de indagações constantes e
analogias, obrigava seus interlocutores a admitirem a falha de suas definições
de conceitos (como por exemplo a virtude ou a sabedoria) e a partir disto, a
investigação partia rumo à busca do significado do conceito em si, de forma a
abranger todos seus exemplos. Os velhos gregos costumavam se utilizar das
palavras sem saberem ao certo a que elas se referiam, como mostram as
diferentes acepções que os convivas de O Banquete tinham do deus Eros e da
deusa Afrodite.
A linguagem,
muitas vezes, é considerada imprecisa ou por demais limitada para descrever ou
representar a força da realidade. Esta consciência da limitação acontece de
forma aguda em autores místicos, como Plotino ou Bergson. Tendo em vista esta
deficiência é que, a partir do final do século XIX, uma corrente de filósofos
passou a se destacar, a dos filósofos analíticos. Eles dizem que a lógica (que
etimologicamente significa a ciência da linguagem) e a teoria do significado
são a parte mais primordial da filosofia, cuja tarefa básica é a análise lógica
de sentenças e inferências, através da qual se obtém a solução de problemas
filosóficos.
Frege, a partir
da linguagem matemática, desenvolveu reflexões sobre a linguagem e o
significado, abrindo caminho para a filosofia da linguagem de Russel, Carnap e
Wittgenstein. William P. Alston, influenciado por estes autores, classifica as
teorias do significado em três classes distintas: ideacional, referencial e
comportamental. Alston utiliza estes termos para interpretar pensamentos
antigos. Locke é colocado, então, como o pai da teoria de significado
ideacional, sendo que ele mesmo nunca usou definição semelhante para sua
teoria.
Na teoria
referencial, adotada por B. Russel, o significado é a referência, ou seja, um
nome como Fido é o cão que a palavra denomina. A palavra pode se referir a um
objeto concreto, a uma coisa, a uma qualidade, a uma relação etc. As palavras
são símbolos representativos de algo diverso delas próprias.
O próprio Alston
se apressa em apresentar esta teoria como rudimentar. Um mesmo objeto pode ter
diversos significados. Brasília e a capital do Brasil são o mesmo referente,
mas possuem significados distintos. Outro ponto é que, se o significado é o
referente, se ele desaparecesse, desapareceria também o significado? Por
exemplo, pelo fato de Cartago ter sido destruída por Roma, a palavra Cartago
deixou de significar algo? E palavras como “e”, “se”, “enquanto”, se referem a
alguma coisa? Os referencialistas
respondem esta questão dividindo as palavras em categoremáticas (que significam
algo por si próprias) e sentecategoremáticas ( que precisam de outras para
significarem). Alston diz que talvez a
escolha da palavra referir seja uma maneira inadequada de dizer que toda
unidade linguística significativa implica em alguma coisa. Outros termos, como
denotar, seriam mais acertados.
A teoria
referencial tem a concepção de que as palavras servem para designar coisas, mas
nem todas as palavras se referem a coisas, e nem todas as coisas podem ser
postas em palavras.
A teoria
ideacional e comportamental tem a concepção de que as palavras tem a
significação apenas em decorrência do que fazem os humanos quando usam a
linguagem. A teoria ideacional acredita que o limite da percepção que posso ter
de um objeto vai ser a sensação que este objeto causará em mim no momento em
que o percebo. Através dos dados empíricos, eu sou capaz de formar idéias
simples (como a de calor), que gerarão idéías complexas (como a de um corpo
quente). Estes enunciados da teoria ideacional são dados por Locke e chamados
de tal maneira por Alston.
As palavras, para
Locke, são marcas sensíveis de idéias, e as idéias são o significado. A
percepção pura é passiva, e a mente também é passiva na sua formação de idéias,
pois nós não interferimos na produção de efeitos em nós. Estes efeitos causam
as idéias simples. A idéia em Locke é definida como tudo o que o espírito
percebe em si mesmo, e que é objeto imediato de percepção e pensamento.
O entendimento é
meramente passivo, e o conhecimento não passaria de idéias complexas de acordo
entre si, da percepção da conexão, do acordo e do desacordo entre as idéias. A
teoria de Locke parece caminhar para uma entificação da idéia, ao passo que a
mente humana seria passiva em relação à mecânica deste processo de perceber,
formar idéias e representar, isto é, trazer à tona algo que não está presente.
Mas o transmissor
de uma mensagem consegue imprimir na alma do receptor a mesma idéia que ele tem
de um objeto? Seria necessário, que a cada expressão minha, esteja presente a
idéia que acompanha esta expressão. Uma representação é uma excitação em meu
cérebro através da memória de certo aspecto da realidade, que transponho para
um discurso mental, exteriorizado em forma de impulso sonoro pela linguagem e
recodificada por quem ouve. O papel do transmissor é excitar no receptor a
mesma idéia.
Hacking observa
que os filósofos não dão definição clara do que seja esta identidade de idéias.
Locke fala algo sobre isso, mas não em conexão
com a linguagem. Porém, parece ser claro que o mesmo objeto produz idéias diferentes nas diversas mentes
que o inteligem. Provavelmente, você compõe a mesma figura que eu ao olhar uma
violeta, mas a palavra bucéfalo é significada de modo diferente por um pintor,
um cavaleiro e um zoólogo, por exemplo.
A idéia independe
da linguagem (pois a linguagem surgiu para transmitir idéias), mas um a palavra
tem um significado imposto. A maior parte do vocabulário de um indivíduo lhe
foi transmitida. Novas palavras surgem a toda instante, mas não vem do nada.
Para elas significarem uma idéia é necessário que haja um correlato empírico
objetivo na vivência do transmissor e do receptor. Pessoas de um mesmo grupo
significam palavras diferentemente, pois ao ouvir uma palavra, puxo de meu
inventário de vivências e do meu dicionário interno tudo que está ligado a esta
palavra, ou a sensação mais forte que tive com referência a esta palavra. Minhas vivências são, em grande parte,
diferentes das do transmissor. O caráter receptivo da linguagem é aceitar uma
palavra no seu uso comum à
sociedade, e o caráter ativo é
transmitir exatamente a idéia que acompanha a expressão ou palavra. Para que haja o mínimo de entendimento, é
necessário um certo conjunto de experiências correspondentes e uma
identificação de sentimentos de todas as partes que se comunicam.
A palavra
significado, para Quine, está saturada a
tal ponto de estar corrompida. Ele sugere o emprego da palavra sinonímia ao
invés de significado. Ao perguntarmos o que é significado, supomos que ele seja
alguma coisa. Porém, pode não ser possível coisificar o significado. Para
Wittgenstein, o significado não é alguma coisa de fato, mas apenas a utilização
da linguagem pelas pessoas, o uso. Wittgenstein zombava dos filósofos que
pretendiam uma relação real entre as palavras e as coisas.
Para Quine, uma
palavra pode ter diferentes significados, dependendo do contexto conceitual a
que pertence. Para a teoria comportamental, a significação de uma forma
linguística é a situação que o locutor a profere e a resposta que causa do
ouvinte. A palavra é a representação de x em virtude de possuir a
potencialidade de originar respostas semelhantes àqueles que x dá origem. Frege
diz existir o sentido porque o uso comum do pensamento e das proposições é
transmitido de geração em geração.
Para que haja a
comunicação através da linguagem falada, não basta supor que a linguagem é
inata. É necessário que hajam certos pressupostos, como a admissão da sociedade
que um certo som deve ser associado com tal objeto. É preciso que haja um
consenso na representação da relação de sinais sonoros com o mundo físico, e
uma correspondência na estrutura mental das partes envolvidas na comunicação.
São regras como essas, aprendidas quase que por intuição que fazem o mundo
físico – distinto dos sujeitos – ser percebido
como signos por seres que tem coisas em comum. Para Alston, as teorias
pecam pela sua supersimplificação, e para Hacking, Alston peca pelo
anacronismo, pois apesar se considerar execelente sua classificação, não se
pode dizer que Locke tem uma teoria da significação.
Miguel Lobato Duclós
http://www.consciencia.org/alsthacki.shtml
Bibliografia
Alston, Willian P.
Filosofia da Linguagem. Tradução álvaro Cabral. Zahar
editores, Rio de Janeiro.
Hacking,
Ian. Why does language a matter to philosophy. Capítulo V, nobodys teory of
meaning.
Lalande, André.
Vocabulário técnico e crítico de filosofia. Martins Fontes, São Paulo.
Diversos tradutores.
Sausurre, Ferdinand. Curso de Lingüísitica General. Tradución Amado Aloísio. Editorial Cosada,
Buenos Aires, 1945.
Nenhum comentário:
Postar um comentário