Alguns
textos de Miguel Duclós me desafiam nesta seleta – semente do próximo livro com sua
obra filosófica – como este que aborda os universais, um tema complexo que faz
parte da história da Filosofia desde Platão. Mas relendo alguns trechos noto
novamente a clareza com que Miguel aborda o assunto, num trabalho avaliado
pelos eruditos da USP. Como nos identificar como humanos?
Aprendi na
História que a Idade Média não é a época das sombras, mas a que deu as bases
para o Renascimento e sem dúvida a retomada do pensamento grego é um dos
pilares desse acontecimento. Nada somos sem a memória. Nada inventamos do nada.
No meu caso, e de muitos outros, entender um pouco de filosofia passa pela obra
autoral de Miguel Lobato Duclós (1978-2015), filósofo por vocação e formação, que nos
deixou imenso e rico legado.
Obrigado por
essa herança, filho querido. Não ameniza a dor, mas nos faz companhia nesta
vida que piorou muito sem tua presença amorosa e esclarecedora.
http://www.consciencia.org/pedro_abelardo.shtml
“O PROBLEMA
DOS UNIVERSAIS EM PEDRO ABELARDO”
MIGUEL
DUCLÓS
Trabalho
Originalmente Apresentado para a FFLCH/USP
"Reflitamos
primeiramente a respeito da causa comum. Cada um dos homens, distintos uns dos
outros, embora difiram tanto pelas próprias essências quanto pelas formas –
como lembramos acima ao investigarmos a física da coisa – se reúnem naquilo que
são homens" (ABELARDO, Lógica Para Principiantes, pg.61)
1 – Escopo
do trabalho
O problema
que se coloca nesse trecho resume a temática da querela dos Universais,
discussão central na filosofia medieval, da qual se ocuparam diversos autores
além de Abelardo num grande período de tempo. Trataremos aqui, de forma
compacta, de alguns aspectos dos universais e da visão de Abelardo sobre o
tema. A questão dos universais é primeiramente enunciada a partir da Isagoge de
Porfírio. Isagoge é o termo grego para "introdução". Trata-se de uma
introdução às categorias de Aristóteles, que como o filósofo mais importante e
de maior alcance, era objeto constante de comentários, debates e glosas.
Averróis, por exemplo, era conhecido como O comentador e escreveu dezenas de
obras sobre o filósofo. Porém ele é de uma geração posterior a Abelardo, viveu
entre 1126 e 1198, enquanto Abelardo viveu entre 1079 e 1142. Nesse período de
tempo a obra de Aristóteles se difundiu consideravelmente. A geração de
Abelardo conhecia Aristóteles principalmente através das traduções de Boécio
para o latim de duas únicas obras, referentes ao corpo da lógica no sistema:
Categorias e De Interpretatione. Estas, juntamente com outros cinco textos
(além de Isagoge, De syllogismo categórico, De syllogismo hypothetico, De
diffèrentiis topicis and De divisione do próprio Boécio) são as fontes
primárias da lógica de Abelardo. Abelardo sabia muito pouco grego, e, não
obstante fazer breves referências a outros trabalhos como os Argumentos
Sofísticos e os Primeiros Analíticos, nada indica que tenha conhecido as
grandes obras sobre a moral, a física e a metafísica.
2 – Platão e
Aristóteles
O conceito
de universal e o problema que ele implica é bastante antigo, e remonta da
universalia medieval até o tà kàtolon de Aristóteles e o eidos e ideai de
Platão. Platão pode ser tomado como o originador desse tópico filosófico
perene, e daí nós lembramos da recorrente frase de A. Whitehead de que toda a
história da filosofia não passa de um amontoado de notas de pé página a Platão.
Ele acreditava que a existência dos universais era necessária não apenas
ontologicamente – para explicar a natureza do mundo, mas também
epistemologicamente – para explicar a natureza da nossa experiência nesse
mundo. Seu conhecido argumento apontava os universais como formas que existem
em si mesmo num domínio espiritual, transcendente. Uma pessoa bela participaria
da forma de beleza. Essa forma só pode ser conhecida pelo intelecto, e não
pelos sentidos, e por isso é assinalada a importância da dialética – o jogo de
perguntas e respostas entre mestre e aluno – como a única maneira de fazer a
alma ascender, por degraus, da lama em que se encontra presa pelos sentidos até
a contemplação da forma. O particular é apenas uma manifestação da forma, e
segundo a epistemologia platónica, para conhecer, é necessário ter acesso aos
universais eternos e imutáveis. O próprio Platão argumenta contra a teoria das
formas no Parmênides. Aristóteles, como é sabido, critica o mestre. As suas
duas principais objeções apontam que Platão, fazendo da Forma uma substância
separada e perfeita introduziu um dualismo exagerado e desnecessário, e que
Platão confunde a categoria da substância com a de qualidade. Colocar o
conhecimento em um outro nível, numa matriz perfeita, não resolveria o
problema, apenas o adiaria. As questões feitas sobre os particulares se
repetiriam nas formas. O segundo ponto seria um erro lógico, já que a forma
seria ao mesmo tempo uma substância individual — requerida pela tese da
separação – e uma qualidade, necessária para ser um universal. A lembrança será
útil para contrapor mais adiante a posição de Abelardo sobre o problema. O
estagirita defende a existência apenas dos individuais, como Sócrates ou esta
cadeira em que estou sentado. Os universais existem apenas como elementos comuns
nos particulares. O universal X é tudo o que é comum ou dividido aos
particulares Y. É predicado dos particulares. Os individuais são classificados
por géneros na medida em que tem as mesmas propriedades. Quanto mais diferenças
nas qualidades determinadas, mais refinada se tornam as classificações.
3 – Conceito
O universal
pode talvez ser definido como um objeto abstraio ou termo que abrange coisas
particulares. Aquilo sobre o qual se podem predicar várias coisas. A definição
é difícil, o universal é mais próprio de ser pensado[i]. Um adjetivo abstrato
como beleza, justiça, coragem e bondade etc. Dizer de dois objetos que cada um
uma tábua, um quadrado, ou é amarelo é dizer que há algo comum nestes objetos,
que pode ser dividido com muitos outros e em virtude do qual os objetos podem
ser classificados como géneros. Essa classificação não é somente possível para
o uso científico, como também inevitável, já que toda experiência passa por
coisas classificadas em géneros, por mais que estes possam ser vagos ou
desarticulados. A palavra Sócrates é um nome "próprio". Supõe-se que
mediante este nome estejamos nos referindo a uma pessoa determinada, a uma
entidade concreta e singular cujo nome é "Sócrates". Da entidade
concreta e singular, ou da pessoa, cujo nome é "Sócrates", podemos
dizer que é um homem, estatura baixa, com barba. Estes termos são usados para
qualificar "Sócrates", são nomes comuns usados para determinar uma
qualidade singular de modo universal, por isso são chamados "universais".
Lembramos aí da questão de Agostinho sobre a relação entre as ideias de Deus
relativas às coisas sensíveis. O problema capital dos universais, portanto, diz
respeito ao seu status ontológico, pois se trata de determinar que espécies de
entidades são. Não obstante isso, há importantes implicações e ramificações em
outras disciplinas: a lógica, a teoria do conhecimento e até mesmo a teologia.
São três as questões levantadas a partir dos universais: a do conceito, a da
verdade e a da linguagem. A predominância dos universais na Idade Média se
deve, em parte, por derivarem dos únicos textos clássicos disponíveis no
período e em parte porque envolvia o dogma da natureza ao mesmo tempo e única e
tríplice de Deus.
4 – Os
medievais e os universais
A enunciação
do problema propriamente dita foi dada na tradução de Boécio de Isagoge,
conforme se segue:
"Como é
necessário, Crisaoro, para compreender a doutrina das categorias de
Aristóteles, saber o que é o género, a diferença, a espécie, o próprio e o
acidente, e como este conhecimento é útil para a definição e, em geral, para
tudo o que se refere à divisão e à demonstração cuja ,doutrina é muito
proveitosa, tentarei em um compêndio e a título de instrução resumir o que
nossos antecessores disseram a respeito, abstendo-me de questões demasiado
profundas e mesmo detendo-me pouco nas mais simples. Não tentarei enunciar se
os géneros e as espécies existem por si mesmos ou na inteligência nua, nem, no
caso de subsistir, se são corporais ou incorporais, nem se existem separados
dos objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos. Este
problema é excessivo e requeriria indagações mais amplas. Me limitarei a
indicar o mais plausível que os antigos e, sobretudo, os peripatéticos disseram
razoavelmente sobre este ponto e os anteriores" (Isagoge, I, 16)". As
três questões postas são as seguintes: "Se os universais existem na
realidade ou apenas no pensamento: utrum verum esse habeant na taníum in
opinione consistant; em seguida, caso de fato existissem, se são corpóreos ou
incorpóreos; em terceiro lugar, se são separados das coisas sensíveis ou se as
entregam. A estas três questões acrescenta por conta própria uma quarta,
destinada a se tornar clássica, como já o eram as três primeiras: "os
géneros e as espécies ainda teriam uma significação para o pensamento se os
indivíduos correspondentes cessassem de existir?" (GILSON, pg 344)2[ii].
Muitos autores medievais se referiram a esse problema e geraram assim as
posições clássicas sobre o assunto: a dos realistas — chamados de antiqui doctores
– e a dos nominalistas.
O extremo
realismo platônico era representado por Guilherme de Champeaux: uma natureza
real e comum está presente em cada ser das espécies, que diferem uns dos outros
por seus acidentes, não pela substância.
Os
universais são coisas (res). Abelardo irá sugerir que duas pessoas então podem
ser uma e a mesma substância. Champeaux expica-se argumentando que são o mesmo
não essencialmente, mas indeterminadamente. José e João são o mesmo em serem
homens, pois pertence ao homem ser mortal e animal racional, mas a humanidade
em cada um não é a mesma, mas similar, porque são dois homens. A própria física
dos corpos, para Abelardo, destitui essa doutrina de sua veracidade, já que a
experiência atesta as coisas como realmente distintas umas das outras. Se o
universal animal existe inteiramente na espécie homem e na espécie cavalo, é ao
mesmo tempo racional e uma e não racional em outra, o que é contraditório, e
portanto, impossível. As objeções do aluno Abelardo ao seu mestre Guilherme
Champeaux fizeram com que esse resignasse de sua posição filosófica.
Os
nominalistas supunham que os universais não são reais, mas se encontram depois
das coisas (universalia post rem). Tratam-se, portanto, de abstrações da
inteligência, reduzidos à materialidade das palavras. Apenas os nomes são
universais, as coisas nomeadas são sempre singulares. Abelardo sofreu forte
influência desta doutrina, embora não seja um nominalista e tenha criticado o
extremismo de Roscelino. Este, conforme a definição de Boécio, afirmava:
"Nihil enim aliud est prolatio (vocis) quam aeris plectro linguae
percussio ". É controversa a classificação da teoria de Abelardo. Embora
ele seja chamado às vezes de nominalista, é mais acertado chamá-lo de conceítualista
ou realista moderado, sendo, no entanto ambas as opções simplificações. Gilson
aponta que a posição de Abelardo não se encontraria numa "linha ideal que
ligaria Aristóteles a Santo Tomás de Aquino", mas antes a "gramática
especulativa a Guilherme de Ockham"[iii]
5- Abelardo
Abelardo
mantinha que os universais existem como pensamentos baseados no particular das
coisas, enquanto os nominalistas supunham existência apenas nas coisas, e
negavam. Para Abelardo, o universal não é um som (vox, emissão de voz, flatus
voeis), como era para Roscelino[iv], mas uma palavra (sermo), ou seja, um som
com significado, o sentido dos nomes (nominum significatio). Adquire seu
sentido pelo seu uso referencial, sendo a referência mediada por uma ideia
geral que é uma imagem composta. O conhecimento depende desse processo de
abstração, uma vez que a separação entre forma e matéria -juntas na natureza –
é empreendida pelo intelecto. Este "não se engana pensado à parte seja a
forma, seja a matéria; ele se enganaria se pensasse que a matéria ou a forma
existem a parte, mas tratar-se-ia de uma falsa concepção dos abstratos, não da
sua abstração" (GILSON, pg 350). A existência dos universais está
relacionada a um evento psicológico, a uma intencionalidade do pensamento. Essa
teoria pode ser chamada de psicológica e serviu para responder as quatro
questões.
Sobre a
primeira questão, Abelardo responde que
"na
verdade, significam pela denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é,
as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados numa
opinião vazia; contudo, de certa maneira, consistem, como ficou estabelecido,
numa inteleçção isolada, nua e pura." (pg 74)
7
Sobre a
segunda questão, convém a seguinte citação:
"(…) de
um certo modo, os corporais, isto é, separados na sua essência e os incorporais
quanto a designação ao nome universal, porque nao os denominam separada e
determidamente, mas confusamente, como o ensinamos acima suficientemente. Daí
também, os próprios universais serem chamados corpóreos quanto à natureza das
coisas, e incorpóreos quanto ao modo de significação, porque embora denominem o
que é separado, não o denominam, separada e determinadamente", (pg 75)
Para a
terceira questão, Abelardo concede que os universais estejam nas coisas
sensíveis, mas dirá que "concedemos que todos os géneros ou espécies
encontram-se nas coisas sensíveis. Mas porque sua intelecção era sempre chamada
de isolada da sensação, eles não pareciam de modo algum estar nas coisas
sensíveis. Por isso perguntava-se com razão se poderiam alguma vez estar nos
sensíveis; e responde-se que, quanto a certos deles, que estão, mas de tal
maneira que, como foi dito, permanecem naturalmente a parte da
sensibilidade".
Sobre a
quarta questão que formulou, Abelardo responderá na p. 76: "de modo algum
admitimos que haja nomes universais quando, tendo sido destruídas as suas
coisas, eles já não são predicáveis de vários, porquanto não são comuns a
quaisquer coisas, como o nome da rosa, quando não há mais rosas, o qual,
entretanto, ainda é então significativo em virtude da intelecção, embora careça
de denominação, pois de outra sorte não haveria a proposição: nenhuma rosa
existe".[v]
BIBLIOGRAFIA
8
Porfírio, o
Fenício: Isagoge: introdução às categorias de Aristóteles. São
Paulo : Matese, 1965.
The Encyclopedia of philosophy. Paul Edwards, editor
in chief. New York, Macmillan 1967
Abelardo, Pedro. Lógica para principantes. Trad. Carlos do Nascimento. Vozes,
1994.
Ferrater-Mora,
José. Diccionário de Filosofía. Ariel, Barcelona, 1994.
Gilson,
Etienne. A Filosofia na Idade Media, Trad. E. Brandão. Martins Fontes, 1995.
[i]
Aristóteles o define como "aquilo que é naturalmente apto para ser
predicado de muitos", oposto ao singular – "aquilo que predica de um
só".
[ii] 2
Filosofia na Idade Media, A; E. Gilson; Trad. E. Brandão. Martins Fontes, 1995.
[iii] 3 Op
Cit, pg 350
[iv] 4
"Fuit autem, nemini magistri nostri Roscellini tam nsana sententia ut
nullam rem partibus constare vellet,
sea sicut
solis vocibus species, ita et partes ascridebat" (Abelard, "Liber
divisionum")
[v] 5 Também
citado por Carlos Ribeiro Nascimento, tradutor da obra, em sua excelente
tradução, que foi muito útil para esclarecer e acompanhar a linha evolutiva do
rico argumento de Abelardo.
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