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26 de março de 2010
A TELA E O JARDIM: O OLHAR QUE LIBERTA
A dominação de classe leva à escuridão do olhar e à sua máscara: o que é negado à percepção serve de insumo para a crítica pseudovanguardista da arte, em que o breu não é breu, é o “não-branco”. Com isso, se justifica a imposição perceptiva, já que a pose intelectual encerra os agentes (o pintor e seus críticos) numa prisão ditada pela moda, ou seja, o mercado imóvel de produtos artísticos, que obedece ao movimento pseudocíclico do tempo (as exposições que se repetem). Ali, o que conta é o dinheiro aparentemente despossuído de sua brutalidade natural de dominação e o silêncio do sufoco, como se fosse o estado natural das coisas.
Para romper essa barreira, o filme Dialogue avec mon jardinier (2007), de Jean Becker, com Daniel Auteuil, Jean-Pierre Darroussin e Fanny Cottençon, propõe uma saída clássica, dentro do materialismo histórico da dialética marxista: a adoção da cultura proletária, a que percebe por meio do domínio da natureza. Ao contratar seu amigo de infância para cuidar do jardim abandonado da família tradicional que se desfez, o pintor redescobre os laços familiares e comunitários, a tradição do fazer operário e, mais importante, sua visão de mundo, antes pautado pelo que produz (seu trabalho nas ferrovias ao longo da vida), e que é substituído pelo que cria (hortas e jardins, seu hobby que acaba virando profissão na aposentadoria).
Assim, não é o convívio “natural” com as plantas que formata as idéias sobre o que é visto, mas seu tratamento, ou seja, a mão na terra, o ato de regar, a colheita cuidadosa e o aproveitamento dos frutos. Não se trata de uma volta à natureza, mas a recuperação da capacidade de enxergar o mundo por meio da ação do trabalho não alienado, no caso, o do jardineiro liberto de sua faina proletária, que está livre para o trabalho prazeroso o dia todo, previsto por Marx quando a humanidade se libertasse de seus grilhões.
O filme, portanto, não é uma gracinha que todos admiram por ser “humano”. Mas uma exposição dos motivos marxistas da História, produzido num país que é, ou foi, o centro do pensamento revolucionário desde a Tomada da Bastilha e que, com a Comuna de Paris, insuflou Marx e Engels a produzirem sua obra que mudou o mundo. O pintor, ao adotar a visão operária, se desaliena do mundo onde estava confinado e recupera sua capacidade de ver, sentir e pintar. Não está mais a serviço das encomendas ou das frustrações de um trabalho que, como qualquer outro, apesar de ser parte da cultura, lhe provocava aborrecimentos.
A verdade é que, para recuperamos o que perdemos no comportamento, na cultura e no sonho, vemos um filme argentino. E para que possamos nos civilizar, avançar, nos conectar com o pensamento clássico da libertação humana, vemos um filme francês. O operário apaixonado pela esposa admirava os olhos do seu grande amor. No olhar está a chave do enigma. No desfecho, quando o operário parte, são exatamente os olhos da mulher que aparecem vazados, como nas estátuas gregas. Uma referência à cultura clássica, que precisamos revisitar todos os dias para não nos deixar enredar nessa soma de armadilhas que nos aguardam em cada esquina.
Cinema, o grande amor de nossas vidas, tem esse dom: nos colocar diante da criação de alto risco, a que não teme fracasso comercial e fala diretamente ao nossos olhos, que, como diz o lugar comum, são as janelas do espírito. Por essa janela entra a luz, as cores, os instrumentos de trabalho, o grande peixe cobiçado nas pescarias. Não se trata de celebrar o figurativismo tradicional, mas o de recuperar a força da percepção liberta dos ditames da sociedade do espetáculo. Tudo no fim vira produto, mas como diz o poema vendo no mercado o que liberta.
RETORNO - Imagem desta edição: Daniel Auteuil trabalha, Jean-Pierre Darroussin observa. E vice-versa.
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