24 de março de 2010

ATUALIDADE DE GUY DEBORD: REVOLUÇÃO CONTRA IDEOLOGIA



Nei Duclós

O livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, lançado em 1967, foi a base para as ações da ala mais radical do Maio de 1968 na França. Trata-se um milagre teórico, pela sua extrema atualidade e clareza na abordagem de um tema complicado que costuma enredar os scholars. Escrito numa sucessão de aforismas precisos e geniais, Debord decifra o mundo contemporâneo gerado pela abundância e as contradições do capitalismo na era da mass media. Vi o filme de 1973 que ele produziu com o mesmo título, que é o seu livro ilustrado por imagens, filmes, publicidade, acrescido da experiência vivida na revolução operário-estudantil francesa de maio de 1968.

Nesse filme fica claro que aquela foi uma revolta não apenas contra o capitalismo, mas contra seus novos aliados: a ideologia de esquerda engessada em sindicatos e partidos comunistas ou socialistas (soa familiar?). Debord explica que a abundância da sociedade do espetáculo – que é uma relação social entre pessoas numa sociedade de classes e não um acúmulo de imagens - anexou a indignação como mercadoria. As instituições representativas do operariado também entraram nesse círculo, participando do sufoco de um sistema que provoca a divisão e o vazio. Os gestos dos concertos musicais para multidões, que representariam a revolta contra ao sistema, também fazem parte dessa impostura da indignação.

Debord acerta sempre pois usa (sem se deixar cegar pela burrice da leitura datada), de maneira lúcida, radical e criativa, as principais lições extraídas das obras de Karl Marx, uma fonte magistral do pensamento que hoje, por ignorância, é atacada como se tivesse a culpa da existência dos imbecis que a invocam. Reproduzo aqui alguns aforismas que tirei do filme e escrevi de memória: "A mercadoria fetichizada da sociedade do espetáculo perde seu valor quando entra na casa dos consumidores". Quantas vezes não nos encantamos com uma roupa na vitrine e quando chegamos em casa vemos que tudo não passava de ilusão? Também some a idéia de originalidade ao notarmos o uso massivo do que nos seduziu.

"Stalin foi descartado como mercadoria obsoleta da sociedade do espetáculo concentrado, o capitalismo burocrático". Entendemos assim como o stalinismo foi jogado fora para a Rússia continuar tendo o direito de invadir a Chechênia. Confirmamos também que os militares no Brasil foram colocados à margem do poder pelo mesmo motivo, já que a presença da farda não atendia mais aos propósitos do capitalismo da sociedade do espetáculo difuso, o do Ocidente. A nova situação se pautava pelo Consenso de Washington, o que inventou as falsas democracias atuais, totalmente dependentes da pirataria internacional e focado na derrubada das fronteiras nacionais.

"O capitalismo se apropriou de todo espaço urbano, que ficou tão sujo, feio e barulhento quanto uma fábrica". Sabemos agora porque não dá para passear nas cidades brasileiras, elas se transformaram num enorme esgoto industrial, principalmente da indústria imobiliária, que ocupou todo o território ou desvirtuou o urbanismo clássico para que coubesse o automóvel, a mercadoria fetichizada por excelência. Vemos também que foi exatamente esse nicho do supra-sumo do fetiche da mercadoria automotiva que surgiu o atual presidente do Brasil, que assumiu o papel atribuído a ele pela esquerda engessada nos sindicatos, denunciada por Debord. Claro como água.

Na França, o Maio de 1968 foi uma composição de forças entre os estudantes que se rebelaram contra o engessamento da cátedra e de um sistema educacional obsoleto, e os operários que se insurgiram contra a falsidade de suas representações. É esclarecedor o fato de os sindicatos dos trabalhadores serem a favor da polícia e da repressão às manifestações, que tomaram conta da França e incendiaram o imaginário do mundo, tornando-se referência de uma revolução legítima, que atacasse a totalidade do problema e não se deixasse enredar pela armadilha proporcionada pelo capitalismo mutante.

O tempo como mercadoria é uma das maiores sacadas de Debord. O eterno presente, que falamos sempre aqui, nada mais é do que a padronização do tempo da mercadoria e da produção, imposto para o mundo inteiro, à revelia dos tempos pessoais e comunitários ou nacionais. O tempo pseudociclico, ou seja, o turismo e as férias e as festas durante o ano apenas mascaram esse tempo único e hegemônico, pois funcionam como um carrossel do Mesmo que gera a insatisfação permanente e a revolta surda, que acaba um dia explodindo.

Aqui no Brasil,1968 foi essencialmente estudantil e como revolta estudantil se esvaziou. A insurgência operária foi falsa, pois manipulada pelos sindicatos. Gerou um líder falso, que acabou assumindo a presidência. Não há limites para a tragédia brasileira.

RETORNO - É possível ler o livro de Debord neste link, em português de Portugal.