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9 de março de 2010
DESPLANTE
Nei Duclós (*)
O comportamento agressivo é fruto da indiferença. O mau exemplo vem de cima e se espalha até atingir o episódio mais ordinário. A pessoa que atravanca o caminho fazendo cara de paisagem, enquanto ao redor todos se esforçam para manobrar, mostra que o tecido social ultrapassou o limite do egoísmo. O que temos é algo mais intenso, uma crueldade endêmica, que coloca no mesmo reduto a gang incendiária e o sujeito convencido de sua boa índole, enquanto exerce seu direito de colocar o som hediondo para atormentar a vizinhança.
Temos muitos suspeitos na origem do drama. Prefiro destacar a ausência do remorso. Não há mais culpa, base de uma vida espiritual consciente do ônus de compartilhar com o próximo o mesmo espaço terreno. Identificada pela psicanálise, a culpa acabou sendo erradicada pela sociedade do espetáculo, que precisa da falta de cidadania para empurrar toda tralha de consumo. Não há mais amargura depois da maldade, estimulada para que todos possam devorar o mundo em busca da realização ou do gozo.
O desplante atinge todas as idades e congestiona o tráfego das ações humanas. Usa-se o que está aparentemente disponível e joga-se os resíduos fora. O álibi perfeito para isso é o sentimento de injustiça. Como as autoridades estão sendo investigadas por desvio de dinheiro, as famílias se estraçalham por motivos variados e a educação marca passo entre o discurso politicamente correto e o caos na sala de aula, então tudo está permitido. Agir errado é a vingança dos que encaram o mundo como a prova definitiva de uma perseguição pessoal.
Vemos assim o chamado motivo fútil assomar no noticiário cada vez com mais freqüência. Um deslize de alguém ao lado pode significar a soma de todos os erros detectados ao longo de uma vida. Nem precisa de uma arma para desencadear a ocorrência. Uma janela que não fecha direito, um olhar atravessado, um empurrão involuntário, tudo é motivo para que o muro entre as pessoas desabe sobre corpos expostos à hostilidade triunfante.
Essa constatação assustadora não pode gerar desesperança, que também é insumo para atos desumanos. O único cuidado é não dourar a evidência com a ilusão. Basta entender como o processo funciona e, munido pela racionalidade, investir sentimento no convívio com o semelhante.
RETORNO- (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 9 de março de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
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