17 de março de 2010

PRECIOUS, A BARRA E O SONHO: ONDE ESTÁ O CINEMA?


O cinema está na confissão da mãe de Precious, a jovem obesa, grávida do pai pela segunda vez, analfabeta, soropositiva? Ou nas cenas de delírio de sucesso de uma vida alternativa sonhada por Precious, onde o professor e o enfermeiro participam como príncipes encantados de uma biografia totalmente voltada para o espetáculo? A resposta parece ser óbvia: é claro que está na história brutal filmada com a máxima crueza por Lee Daniels a partir de um romance de Sapphire de 1987, roteirizado por Geoffrey Fletcher, que levou um Oscar pelo seu trabalho.

Mas uma resposta mais completa seria: como está cada vez mais tênue a fronteira entre Hollywood e Festival Sundance (de onde saiu Precious), o cinemão aderiu à transgressão conceitual alternativa e faz a crítica de seu passado, enquanto seduz os espectadores, agora mais exigentes, com novos impactos, com uma história sobre a inclusão de uma cidadã marginalizada (interpretada por Gabourey Sidibe), que interage com um complicado sistema de apoio social na América.

O admirável nos americanos, pelo menos em boa parte deles, nos últimos tempos, é essa visão desassombrada sobre seus próprios problemas. Eles podem: contam com instituições e políticas públicas que cercam a população de alternativas, mesmo que não sejam as melhores. Aqui, o abandono do Estado leva as pessoas a cometer desatinos, de querer consertar o mundo e os drogados apenas por ações voluntariosas, enquanto do dinheiro que deveria ir para as práticas sociais vai mesmo para o ralo.

É tocante ver, em Precious, a professora na escola alternativa, a assistente social que quer saber sobre o caso de estupro, entre outros personagens cheios de coragem e humanidade, sem nenhum resíduo de falsas boas intenções. São vocações adotadas pelo Estado, com uma ação que obedece a critérios e a processos bem definidos.

Se houve um Oscar merecido em 2010, esse foi para a atriz e cantora Mo´nique, que faz o papel de Mary, a mãe de Precious. Ela está assustadora no seu papel dramático em que pressiona a filha até a insanidade total. A cena da confissão, em que narra como o marido e pai da sua filha seduziu a criança ao longo do tempo e estuprou-a, é o ápice de uma performance que começa e termina com extrema intensidade. Mary é a parede contra a qual se bate a filha desesperada, que é levada ao surto permanente, em que tenta escapar pelo sonho, quando só tem para si a barra pesada da vida no Harlem.

Mas a garota que sonhava em ser uma estrela qualquer da sociedade do espetáculo acaba sendo a protagonista da própria vida, conseguindo trabalho, avançando nos estudos e recuperando os filhos que antes não tinha condições de criar. O cinema glamouroso cheio de maquiagem e gestos estudantes e frases vazias cede ao impacto da câmara frontal diante de personalidades do nosso tempo, vistos em sua inteireza. Não tem como colocar para baixo do tapete toda a violência estampada no filme. E isso que a narrativa comporta apenas alguns tapas, socos e empurrões, além de uma cena mais pesada, da briga definitiva entre mãe e filha.

A violência é psicológica, é dos conflitos sociais, é da ignorância, da promiscuidade> isso Precious tem de muito forte. Mas tudo pode ser enfrentado, mesmo na baixa escala social. Isto o filme tem de mais precioso.

RETORNO - Imagem desta edição: Gabourey Sidibe e Mo'Nique numa cena de Precious.

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