Nei Duclós
“Parem tudo de comer” era a frase mais temida dita por meu
pai, que não admitia a refeição familiar sem sua presença inaugural. Só
sentávamos à mesa depois que ele decidia. Enquanto variávamos de fome,
xingávamos as visitas, os telefonemas, toda sorte de interferência na hora
sagrada da mesa. Quando havia a suspeita de que não chegaria a tempo, era
decidido que os pratos seriam servidos. Mas no meio da festa, vinha o temeroso
jargão que virou, como tantos outros, folclore de um dialeto entre nós.
Dizíamos brincando mais tarde, sempre que víamos alguém comendo. Por pura
implicância, claro. Filhos numerosos sempre foram território livre para o
deboche.
“Quem vai, vai, quem não vai, fica” era o grito de guerra
dos grandes eventos, também de autoria do meu pai. Quando ele decidia que
iríamos á praia, que ficava a dois quarteirões. Praia de rio, um bálsamo para
os verões insuportáveis da minha terra. Ou então quando íamos em bando comer
sorvete na praça. Ficou sendo também uma “dizida” carinhosa quando tudo se
esfumou, no tempo futuro em que nos encontrávamos nas quebradas da vida, em
plena diáspora e fazíamos visitas que acabavam cedo demais. Era hora de partir.
Quem vai, vai, quem não vai, fica, dizíamos, já com lágrimas no olhos.
“Bueno, me dijo, y se fué com outro”. Esse espanholismo
tirado, parece, do Martin Fierro (que em casa era recitado pelos adultos a toda
hora) era a senha para que algo começasse. Uma refeição, uma pescaria. Queria
dizer: acabou-se a espera. Era relacionado com um caso de amor perdido, quando
a mulher se manda com outro e abandona o autor da frase. “E foi bem o que te
aconteceu” diziam as mulheres, vingativas, quando os homens vinham com essa
cantilena. Outro hit do Martin Fierro era a resposta à recorrente pergunta
infnatil “e coruja, se come?”. Todo bicho que caminha vai parar no assador, era o que diziam os mais velhos.
Além dos jargões, haviam as piadas repetidas ao longo dos
séculos. A favorita do meu pai, que ele achava sempre, invariavelmente, muito
engraçada e que durou décadas, era a do sujeito que conversa com o garçom.
Este, solícito, pergunta: o senhor prefere chá ou café? Ora que pergunta, diz o
homem (e meu pai se esmerava na imitação do cara bem posto na mesa mostrando
que naturalmente a resposta era óbvia demais). É claro que vou querer chá (era
mais chic; café era muito popular). É, devolvia o garçom, definitivo, pois chá “num”
tem, desfecho que arrancava gargalhadas do contador de anedotas. Ríamos por
solidariedade e por osmose, porque era uma inundação de riso. Ou seja: não havia escolha,
tudo já está decidido de antemão. Não adianta “se fresquear”, como se diz na
fronteira.
Algumas piadas foram
sazonais, como a do mexicano que perguntava: te gusta las flores? ao que a
vítima repetia, si mucho. Aí vinha o barulho do tiro pum pum,e o arremate: Mañana
tendrás. Meu pai chegou a me comprar um jogo completo de dois revólveres com
cinturão e balas de plástico que saltavam, só para brincarmos da piada. Já era
uma disposição.
Há outros jargões, que não lembro. A memória vai se
esvaindo, enquanto a imagem paterna mantém-se firme, com seu olhar firme, rosto
iluminado e gestos decididos. O mais bem plantado ser na superfície do planeta.
Nada temia. Seu nome era coragem.
RETORNO - Imagem desta edição: mesa animada provavelmente no Campana, que pertencia ao meu tio Nico, que é o primeiro à esquerda. Meu pai está ao seu lado, é o segundo da esquerda para a direita. Foto divulgada no espaço do Facebook da conterrânea Jussara Aymone.