Nei Duclós
História é a abordagem dos fatos nos princípios e técnicas
de uma metodologia científica, isenta de ideologia. O materialismo dialético, por
exemplo, obedece a princípios e técnicas, que podem levar ao esclarecimento
sobre períodos do passado ou eventos do presente, mas deixa de ser ciência
quando se submete a uma ideologia, mesmo que tenha sido criada dentro do seu
rigor metodológico. A metodologia weberiana do Tipo Ideal é ciência à medida em
que não se submete a uma pretensa hegemonia do destino manifesto do
capitalismo.
Os franceses da Annales incluíram fatos, populações e
enfoques que tinham sido marginalizados por Ranke, o fundador da História
institucional eurocêntrica, (aquela que
determinava ser outros territórios fora de seu foco como “terras sem História).
Mas o minimalismo das microhistórias acaba também virando uma distorção quando
seus seguidores renegam ou desprezam a hegemonia de superestruturas poderosas que formatam a vida
das nações.
Hoje virou epidemia considerar tudo como fato histórico. Há
uma fome de História no ar, que serve para todo tipo de equívoco. O mais
frequente é a reportagem sobre pretensos momentos históricos. Como a História
não pode ser vista a olho nu, pois é a costura de manifestações humanas no
tempo e não o olhar cru sobre elas, fica claro que o reportado não passa de
documento, fonte, vestígio, pista. São insumos para a História, mas não a própria.
O erro se espalha e se consolida porque os jornalistas em geral
não possuem formação acadêmica (os professores de “comunicação” adoram
obrigá-los a ler Notícias do Planalto, por exemplo, em vez de Walter Benjamin
ou Pierre Bourdieu) e acham que podem devorar o mundo com seu trabalho, quando
não conseguem nem distinguir o que é um fato do que é História. As câmaras que
filmaram o incêndio do Reichstag na Alemanha da ascensão nazista não registram
um fato histórico, registram um fato ponto. A História vem depois: foi obra de
Hitler? Serviu para consolidar a tirania? Significa o fim da democracia e a
explosão do terror estatal? Aí entra a História, ciência humana e não documentário.
Weber nos ensina que os fatos não podem ser resgatados (são “incomensuráveis”) a não ser sob a ótica
de uma metodologia. O que vemos na mídia são versões, até mesmo as transmissões
ao vivo, limitadas por frames, luzes, transmissões e telas em determinados
espaços de tempo. Não porque a Imprensa seja a coisa malvada que todos dizem (e
o termo PIG, que significa porco, lembra
bastante a acusação nazista contra a imprensa “nas mãos dos judeus”, identificados
com a sujeira) mas porque é impossível resgatar o passado (que se repete
primeiro como tragédia e depois como farsa, como diz Marx na célebre abertura
do seu 18 Brumário). É um truque do tempo: o que passou some, mesmo que tenha
deixado pistas. Estas servem não para reconstituir o que aconteceu, mas para
que haja uma percepção do que aconteceu dentro de um rigor metodológico, de uma
técnica, num ambiente visual, sonoro ou
escrito ou, de preferência, tudo isso junto.
Vemos como os documentários sobre a natureza consolidaram
alguns enfoques repassados como científicos. Um: o de que existe aquecimento
global. Dois: que os filhotes brincam para treinar a vida adulta. Três: que
tudo ou quase gira em torno do acasalamento e da reprodução. Quatro: o
tratamento de irracional para criaturas que possuem técnicas de sobrevivência,
linguagens próprias e encontram soluções originais diante de dificuldades.
Sobre os anos 60, já sabemos: o mundo mudou
e o sonho não acabou. E por aí vai.
Numa faculdade de História não estudamos fatos . Não ficamos
decorando as guerras Púnicas. Estudamos metodologias. Aprendemos a aprender. Posso dizer isso pois
fiz História na USP e passei com média geral de 9,3. Uma chuva de dez em vários
trabalhos. Falo não para me afirmar, mas para apoiar o que digo acima. Parece
estranho, mas é assim que funciona. Portanto, senhores da mídia, parem de falar
em histórico a três por quatro. Vocês não sabem do que se trata.
RETORNO - Imagem
desta edição: uma versão visual imaginada em que Anibal assombra os romanos nas
Guerras Púnicas. Tirei daqui.