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17 de junho de 2006
O SOL OCULTO
A denúncia à mistificação das artes, o reconhecimento do impasse e a aposta de um recomeço da cultura brasileira (Resenha publicada neste sábado no caderno Cultura, do Diário Catarinense)
Nei Duclós
Ficção é o álibi perfeito para contar a verdade. Isenta o autor de crime de calúnia e ainda enriquece a biografia artística. É o que Carlos Henrique Schroeder faz no seu oitavo romance, Ensaio do vazio (Coleção Rocinante, Editora 7Letras, 114 pgs.). Seu narrador-personagem é a soma dos detritos de uma comunidade, o Brasil, uma criatura compactada no pesadelo a que estamos acostumados, mas apresentado de forma tão convincente e, horror supremo, humana, que não desgrudamos o olho da narrativa. Lemos compulsivamente essa espessa e breve trajetória, não para saber aonde quer chegar (o desfecho está por toda parte), mas pela sintonia com o país em nossa volta e a sedução da leitura promovida pelo talento.
Como interatividade é uma ilusão na terra dos monólogos, Schroeder abusa da sua invenção e a leva para as situações mais graves, os lances mais perversos, as palavras mais cruéis, os sonhos mais rudes. Impune diante da criação que toma a forma de um monstro, e que, devido ao silêncio dos leitores, jamais poderá ser contestada, ele se compraz com o que descreve. Talvez, no avesso desse desplante, aposte na carga desdramática do excesso - ou seja, pedindo que o leitor releve tanta impostura, já que é impossível uma vida chegar a tamanha degradação e continuar alegremente exibindo sua lucidez. Mas entre a intenção virtual e o texto real, o escritor compõe uma performance irada, à moda dos artistas contemporâneos, que, ao invés da obra, apostam no processo e ficam satisfeitos quando não são flagrados em seus desatinos.
O romance é, assim, colocado como um trabalho de vanguarda numa bienal de sucesso, nesse tipo de evento comparado a um shopping center de mercadorias descartáveis por Ferreira Gullar em Sobre Arte (Coleção Sabor Literário da José Olympio, republicado junto com o ensaio Sobre poesia - uma luz no chão, 170 pgs.). Numa conexão explícita, o personagem de Schroeder, pelo menos nas intenções (viver do mercado, em conúbio com os neomarchands) e nas convicções, é idêntico ao de Ferreira Gullar. "Minha obra mais famosa, premiada em três salões nacionais e vendida a um empresário mato-grossense, chama-se Espelho. É um papel branco colado num pequeno tablado de madeira. Pura asneira. Mas me rendeu várias reportagens em revistas especializadas", diz Ricardo, a criatura de Ensaio do vazio. "A busca da novidade pela novidade tornou-se um valor da arte em função do mercado. Mas como a obra de arte não tem a utilidade funcional da geladeira e do liqüidificador, essa busca da novidade, nela, levou à sua desintegração formal e ao que hoje se chama de arte conceitual - a não-arte", diz Gullar.
A conexão nutre-se dessa identificação reveladora. Daí para frente, Schroeder implanta no seu artista uma seqüência de crimes trazidos da formação - os planos comerciais da família, o mau exemplo do pai, o sufoco da cidade do interior. Eles afloram na capital como o gozo múltiplo de uma civilização torta e decaída, espécie de véspera do castigo sem a busca bíblica dos justos. É tanta manipulação que o próprio personagem se rebela contra o autor, esse lance mistificador que sempre rende bons frutos, já que serve para confirmar a distância entre criador e criatura. Não fosse assim, o escritor teria que sair da publicação do romance direto para a masmorra. O gesto de independência gera uma chance para o personagem, que procura recomeçar com a esposa a vida conjugal negada ao longo do romance. É uma situação que pertence à juventude de Ricardo, mas que, por decisão da narrativa, funciona como seu reinício na idade madura.
Talvez Schroeder jure ser sua imaginação, mas Ricardo pode ser encarado como o alter ego que jamais deixamos vir à tona, a não ser vestido de personagem. A justaposição entre o escritor e sua criatura é por demais evidente: de onde ele tiraria, a não ser da própria humanidade (a única que está acessível a qualquer um de nós), a verdadeira deformação que negamos? Isso não virá do olhar mesquinho sobre o outro, mas do que somos capazes de pensar ou fazer quando não há paz na vida adulta. A ficção se transforma, assim, num barco singrando o mar de detritos reais. É ultrajante que a literatura exista, pois é uma forma de escaparmos do que realmente somos (quando embrulhamos a carne suja com papel colorido). Mas, ao mesmo tempo, é esse passo que nos transporta para uma revitalização.
Não fosse essa aposta no recomeço, seria um novo beco sem saída, pois tanto Schroeder quanto Gullar são escritores de vanguarda, e isso poderia colocá-los na vala comum do que condenam. A diferença é que eles não pagam tributo ao rótulo, antes se curvam diante da fonte que alimenta o andar. A vida perdida do romance agarra-se ao pesadelo do real (em Matrix, a mais completa metáfora contemporânea da manipulação) e aos mestres (Kafka, Orwell) para abrir um claro na mata fechada do vazio. E o tempo perdido do poema revisita a luz e o chão maranhense, quando o poeta faz as pazes com sua contundência e sua força. É a luta por uma poesia que "nos ajudasse a nos assumirmos por nós mesmos".
Os dois escritores dão um sopro na modorra do cenário cultural brasileiro. Não porque exijam o lugar de destaque ou façam a pose exigida para a ocasião. Mas porque a resenha, território da liberdade, encontra nessa sintonia a fresta por onde passa o raio possível de um sol ainda oculto.
RETORNO - A magnífica foto de Ferreira Gullar é do fotógrafo Ronaldo Bernardi, do Diário Catarinense. Na foto mais abaixo, o escritor Carlos Henrique Schroeder.
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