27 de junho de 2006

A SOMBRA DO PRESIDENTE MAO





Não tem perigo de mudar: todo cinema é manipulado pela ideologia. Dos filmes comentados ontem, a maioria obedece ao padrão CIA/ Pentágono: o seqüestro do avião que trabalha a paranóia americana sempre bem fundamentada, o discurso do líder africano declarado culpado pelo roteiro e a direção de Sidney Pollack (com Sean Penn dando aulas de americanismo da era Bush), o Homem do Tempo incensando o cara que pode fracassar em tudo menos na capacidade de fazer dinheiro (com Nicholas Cage sorrindo como um idiota no final). O cinema americano não escapa das garras do império e é seu principal instrumento, pois se dedica a possuir as mentes de todos os povos dominados (inclusive o interno). Na periferia, surge o cinema chinês, brilhante, que jamais faz um filme do lado de lá do balcão, ou seja, sob o ponto de vista da revolução cultural do presidente Mao. O velho guia é achincalhado pelos seus compatriotas, cineastas e escritores, como Dai Sijie, autor do livro e diretor de Balzac e a pequena costureira chinesa, que é uma homenagem aos clássicos da cultura ocidental e uma pá de cal ao grande movimento de massas que colocou a arrogância bem fornida na lavoura.

CERTEZAS - Os intelectuais se vingam do grande perigo que correram, o de serem afastados de seus brinquedos para sentir o gosto do barro e das fezes do mundo jogado fora. Longe de nós ter que fazer força física, obedecer a camponeses analfabetos, ser acusado de reacionário e idolatrar líderes da revolução proletária. Refugiar-se em Balzac, Dostoiewski e outros autores foi o caminho encontrado pelos personagens do filme de Dai Sijie, que fez grande sucesso ao lançar seu romance e ser entrevistado na televisão por Bernard Pivot (ah, um programa cultural em horário nobre, quem nos dera; pode fazer maravilhas). A situação é brutal: confinados nas montanhas, nas mãos da barbárie ideológica, dois rapazes e uma moça fortalecem laços de amizade e amor ao redor de grandes obras, enquanto fazem o chefe local de palhaço misturando Mozart com Mao e o Lago dos Cisnes com Lênin. São hilárias as cenas em que a ignorância se expõe para o mundo culto, nós, a platéia bem acomodada na cadeira. Passar por uma situação dessas é a morte em vida, mas ficamos pensando se há outra maneira de erradicar as certezas que mandam os escravos preguiçosos trabalhar na nossa cultura cada vez mais escravocrata.

POLÊMICA - Hoje, as polêmicas se revestem de petardos desaforados. As facilidades da internet, que colocam interlocutores em contato sem que haja nenhum vislumbre físico, faz com que se possa dizer as maiores barbaridades, na certeza da impunidade. Atacar escudado numa tela de micro é a forma mais explícita de covardia do nosso tempo. A polêmica precisa entrar em território mais civilizado, ou seja, a partir dos sentidos que geram a percepção do interlocutor. Você só pode polemizar se escutar o outro. Dizer atropelando pensamentos e palavras não é um bom expediente. Mas a mesmice do pensamento é incentivada pela indústria cultural, que jamais traz à tona filmes ou livros que se contraponham ao marketing imperial que domina o mundo. Lembro o impacto dos poemas e citações de Mao (que o word corrige sempre automaticamente para Mão) Tse Tung nos anos 60. Estávamos longe da realidade reportada pelo cinema revisionista chinês dos anos 90 para cá. O heroísmo chinês nos emocionava e a limpidez das teses e propostas nos seduziam. Depois, vimos que a nossa realidade impunha outras percepções. Mas fico invocado com a uniformidade do ataque ao que um dia foi visto como mudança radical de posturas e políticas.

SUFOCO - Precisamos respirar no compacto ambiente sufocado da cultura global. Precisamos de luz e pensar por nossa própria conta. Não podemos ficar à mercê desses rios de lava ideológica que percorrem o mundo, como se fossem uma enchente irreversível, que nos afoga, a nós, que amávamos tanto a revolução.

Nenhum comentário:

Postar um comentário