
A denúncia à mistificação das artes, o reconhecimento do impasse e a aposta de um recomeço da cultura brasileira (Resenha publicada neste sábado no caderno Cultura, do Diário Catarinense)
Nei Duclós
Ficção é o álibi perfeito para contar a verdade. Isenta o autor de crime de calúnia e ainda enriquece a biografia artística. É o que Carlos Henrique Schroeder faz no seu oitavo romance, Ensaio do vazio (Coleção Rocinante, Editora 7Letras, 114 pgs.). Seu narrador-personagem é a soma dos detritos de uma comunidade, o Brasil, uma criatura compactada no pesadelo a que estamos acostumados, mas apresentado de forma tão convincente e, horror supremo, humana, que não desgrudamos o olho da narrativa. Lemos compulsivamente essa espessa e breve trajetória, não para saber aonde quer chegar (o desfecho está por toda parte), mas pela sintonia com o país em nossa volta e a sedução da leitura promovida pelo talento.
Como interatividade é uma ilusão na terra dos monólogos, Schroeder abusa da sua invenção e a leva para as situações mais graves, os lances mais perversos, as palavras mais cruéis, os sonhos mais rudes. Impune diante da criação que toma a forma de um monstro, e que, devido ao silêncio dos leitores, jamais poderá ser contestada, ele se compraz com o que descreve. Talvez, no avesso desse desplante, aposte na carga desdramática do excesso - ou seja, pedindo que o leitor releve tanta impostura, já que é impossível uma vida chegar a tamanha degradação e continuar alegremente exibindo sua lucidez. Mas entre a intenção virtual e o texto real, o escritor compõe uma performance irada, à moda dos artistas contemporâneos, que, ao invés da obra, apostam no processo e ficam satisfeitos quando não são flagrados em seus desatinos.
O romance é, assim, colocado como um trabalho de vanguarda numa bienal de sucesso, nesse tipo de evento comparado a um shopping center de mercadorias descartáveis por Ferreira Gullar em Sobre Arte (Coleção Sabor Literário da José Olympio, republicado junto com o ensaio Sobre poesia - uma luz no chão, 170 pgs.). Numa conexão explícita, o personagem de Schroeder, pelo menos nas intenções (viver do mercado, em conúbio com os neomarchands) e nas convicções, é idêntico ao de Ferreira Gullar. "Minha obra mais famosa, premiada em três salões nacionais e vendida a um empresário mato-grossense, chama-se Espelho. É um papel branco colado num pequeno tablado de madeira. Pura asneira. Mas me rendeu várias reportagens em revistas especializadas", diz Ricardo, a criatura de Ensaio do vazio. "A busca da novidade pela novidade tornou-se um valor da arte em função do mercado. Mas como a obra de arte não tem a utilidade funcional da geladeira e do liqüidificador, essa busca da novidade, nela, levou à sua desintegração formal e ao que hoje se chama de arte conceitual - a não-arte", diz Gullar.
A conexão nutre-se dessa identificação reveladora. Daí para frente, Schroeder implanta no seu artista uma seqüência de crimes trazidos da formação - os planos comerciais da família, o mau exemplo do pai, o sufoco da cidade do interior. Eles afloram na capital como o gozo múltiplo de uma civilização torta e decaída, espécie de véspera do castigo sem a busca bíblica dos justos. É tanta manipulação que o próprio personagem se rebela contra o autor, esse lance mistificador que sempre rende bons frutos, já que serve para confirmar a distância entre criador e criatura. Não fosse assim, o escritor teria que sair da publicação do romance direto para a masmorra. O gesto de independência gera uma chance para o personagem, que procura recomeçar com a esposa a vida conjugal negada ao longo do romance. É uma situação que pertence à juventude de Ricardo, mas que, por decisão da narrativa, funciona como seu reinício na idade madura.

Não fosse essa aposta no recomeço, seria um novo beco sem saída, pois tanto Schroeder quanto Gullar são escritores de vanguarda, e isso poderia colocá-los na vala comum do que condenam. A diferença é que eles não pagam tributo ao rótulo, antes se curvam diante da fonte que alimenta o andar. A vida perdida do romance agarra-se ao pesadelo do real (em Matrix, a mais completa metáfora contemporânea da manipulação) e aos mestres (Kafka, Orwell) para abrir um claro na mata fechada do vazio. E o tempo perdido do poema revisita a luz e o chão maranhense, quando o poeta faz as pazes com sua contundência e sua força. É a luta por uma poesia que "nos ajudasse a nos assumirmos por nós mesmos".
Os dois escritores dão um sopro na modorra do cenário cultural brasileiro. Não porque exijam o lugar de destaque ou façam a pose exigida para a ocasião. Mas porque a resenha, território da liberdade, encontra nessa sintonia a fresta por onde passa o raio possível de um sol ainda oculto.
RETORNO - A magnífica foto de Ferreira Gullar é do fotógrafo Ronaldo Bernardi, do Diário Catarinense. Na foto mais abaixo, o escritor Carlos Henrique Schroeder.
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