14 de junho de 2006

TEMOS O CORPO ERRADO, RONALDO





Já decidiram: Ronaldo está gordo, parece um panzer em campo e deve ficar no banco para reaprender a jogar, como disse um blogueiro famoso. Todos caíram matando em cima do craque, aquele cara que nos deu uma Copa, a de 2002, quando fez dois gols na final contra a arrogância do arqueiro alemão, que estava pronto para provar a superioridade pré-determinada. A verdade é que sempre tivemos o corpo errado. Fomos muito magros quando espichamos na adolescência sem fim e somos os eternos gordos para o mundo que entronizou a estética fashion atleticamente correta. No futebol, o corpo errado dos craques é a regra, a começar por Garrincha, que pela lógica imperante jamais deveria ter jogado. Vejam Maradona, socado e retaco. Ou o franzino Pelé em 1958, que foi convocado para a seleção aos 16 anos, porque tínhamos crônica esportiva como Nelson Rodrigues e dirigentes como Paulo Machado de Carvalho. Onde já se viu colocar uma pluma diante dos tanques? Pois a pluma voou, deu chapéu e acabou levantando a taça.

PROFESSOR - O que dizer de Ronaldinho Gaúcho, complamente fora de esquadro? Deveria ter os dentes no lugar para que a bola seguisse a trilha da correção absoluta? A verdade é que a diversidade humana precisa ser tolerada para que o talento aflore e a verdade se imponha. Se um barrigudo ágrafo levantar a lebre de que nosso craque está gordo, e se nossa estréia não foi a dos nossos sonhos, o que tem a ver a biografia de Ronaldo com nossas ansiedades? Já deveríamos ter aprendido que uma Copa do Mundo é a conquista mais árdua, não porque nela se manifeste o esplendor da glória dos deuses esportivos, mas por ser um trabalho de humana escassez, costurada pelo avesso, aos poucos, combinando espírito de equipe com fagulhas de gênio, dedicação e desprendimento, estratégia e lances de acaso. Um técnico como Parreira, que aposta na prudência, que impõe o toque lateral de bola no meio do campo, que constrói títulos com sua personalidade quase apagada, que é chamado de professor não por acaso, jamais poderia ser o técnico de uma seleção que empresta o nome do Brasil para milhões de apátridas.

ESTEPE - Pois é isso que somos: uns não-brasileiros. Vejo faixas enormes em todo o país: os catarinenses, os paulistas, os mineiros apóiam a seleção do Brasil. Não são os brasileiros que apóiam a própria seleção, mas sim esses cidadãos federalizados que gostam de se sentir canarinhos na hora da vitória. O Brasil é nosso escravo, o usamos para sermos campeões. Qualquer coisa, vestimos camisas italianas, alemãs, sérvias, já que somos de lá, do lado de lá do mar, oriundi, estrangeiros eternos, duplos cidadãos. Temos sempre uma seleção estepe. Se o Brasil, esse país fora de nós, se estrepar, bem, temos um nome francês, italiano, alemão para compensar. Bem que poderemos chegar à final caso esse gordo continuar plantado na área, caso esse panzer insistir em usurpar a posição que pertence aos outros. Acho Robinho o máximo, sei como todo mundo que ele encheu de gás o time brasileiro, confesso que gostaria de ver Juninho Pernambucano batendo todas aquelas faltas ou Ricardinho costurando o meio de campo. Mas isso não me dá motivos para execrar Ronaldo, o garoto que começou no São Cristóvão, explodiu ainda menino no Cruzeiro e foi cedo para glória européia.

AGORA - Teu tempo é agora, Ronaldo. Temos o corpo errado, cracaço. Somos da mesma nação de apátridas, da mesma nação que cospe nos seus heróis. Bastará você fazer um gol, mais um de tua gloriosa carreira, a mesma que um dia sucumbiu sob o olho gordo geral, quando apostaram em tua queda absoluta, para que ressuscite a confiança em ti, pelo menos por parte desses que hoje te achincalham. Estavas desacreditado antes de 2002, não fosse esse dialético turrão chamado Felipe Scolari te colocar no podium e dizer é tua, garoto, é tua, cara. Agora bastou a estréia chocha do nosso time para que haja pânico geral. Com o brasileiro, há quem possa: basta um time se articular, como aconteceu com a Croácia, basta uma surpresa vir rasgando, como a Austrália, e eis que nos vemos diante de nossa pobre humanidade. Não somos deuses nos minutos decisivos das Copas do mundo. O que nos faz campeões não é o carnaval, a firula, a alegria, o talento. O que nos faz vitoriosos é essa teimosia que insiste no título, essa determinação de seguir um chamado, a vocação para o vôo e a vitória. Todos contribuem para que sejamos penta e possivelmente hexacampeões. Não nós os que nos sacudimos diante das câmeras, mas nós os que enfrentamos todos os dias a pobreza, a insegurança, a dor de ver partir tantos brasileiros mortos nas estradas, nas casas, nas cidades e nos campos.

ESQUINAS - Somos nós, Ronaldo, os caras que estão sempre com o corpo errado, que jamais agradam os estetas infames, nós somos os caras que fazemos dessa nação algo maior do que o desespero. Não importa que caias na tentação de tantas besteiras expostas na mídia, tuas fraquezas e vaidades. Somos como tu, craque, humanos até o osso, mas com a chance de fazer acontecer algo que ficará para além de nossas vidas. Talvez seja a alma que cultivamos de maneira tão árdua em nosso corpo precário. E como somos escassos, e irmãos, sei que dependo de tua força muscular, de teus pulmões e de teu corpo com a gana do touro e a graça do toureiro (vejam quando Ronaldo bate na bola antes do gol fatal, como Kaká fez no jogo contra a Croácia). O secretário geral da ONU diz que tem inveja da Fifa. Não deveria ter. Deveria era prestar atenção nas pessoas que fazem a Copa, diante dos olhos do mundo, num arranque de auto-superação. A ONU, que nos deu Sergio Vieira de Mello (que tanta falta faz hoje em Timor Leste), deveria era apostar no corpo errado da humanidade, esse que é massacrado nas esquinas e depende muito mais do que negociações em volta da mesa.

BANDEIRAS - Dependemos todos nós de pessoas que um dia são carregadas em nossos ombros. Eles são nosso porta-estandarte. É com eles que fazemos tremular bandeiras de paz. É junto com eles, na vitória ou na derrota, que somos cidadãos de um país de verdade, de uma nação séria, de uma grandeza eterna, exatamente por ser mortal, e esquelética ou rotunda. Somos a alma imortal soprada em vasos de barro. É verdade que estamos gordos? Não importa o que aparentamos ser. Isso não prova o que podemos fazer. O que vale é o que somos de verdade, e a verdade é que somos o pânico de quem duvidou de nós.

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