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30 de junho de 2006
A FORMAÇÃO É A NOSSA NATUREZA
Confundimos tudo. Achamos que as coisas eram naturais e não eram. Tudo foi fruto da nossa formação. Atropelar quem vai na frente, por exemplo, sempre soubemos que não podia, hoje é comum. Pensávamos: eu não atropelo quem está na minha frente porque isso fere a ética, contraria a minha natureza humana. Não é verdade. Não subíamos pelas pernas alheias, não os expulsávamos com nossos saltos duros, não o empurrávamos com nossos cotovelos, não chutávamos quem se interpusesse no caminho porque aprendemos, desde o jardim da infância, a fazer fila. Podem rir. Mas a fila mostrou ao nosso corpo que tínhamos um espaço nosso, que não poderíamos derrubar quem estava na frente. Depois de fazer fila, entrávamos na sala de aula. O que tínhamos lá? Carteiras em fila. Havia alguém na nossa frente, outro atrás, mais um no lado esquerdo e ainda no lado direito. Não estávamos aglomerados como manadas, estávamos em formação como pássaros migrantes.
Que coisa mais reacionária de se dizer! Não acho. Reacionário é colocar toda essa formação no lixo, como aconteceu no Brasil, e ter que conviver com gerações confortavelmente instaladas no banco ao lado, cuspindo chicletes na tua cara, abrindo as pernas até você se levantar, chutando teus calcanhares na hora de entrar ou sair da condução. Isso sim é de extrema direita. Progresso é saber se sentar, ter noção que não podemos optar, em massa, pelo conforto ilimitado, quando espichamos nossos corpos até o limite da irresponsabilidade e ainda rimos quando alguém tropeça devido à falta de educação geral.
A formação se transformou na nossa natureza. É natural que as pessoas se levantem quando alguém em situação precária está em pé (idoso, deficiente físico, mulher com criança no colo). Mas é natural porque aprendemos na marra. Não podemos refocilar no prato, comer sem vestir a camisa ou se pentear, pegar qualquer alimento com as mãos, secar a garrafa de refrigerante sem repartir com o próximo. Tudo isso fica natural se existirem pais, mestres, adultos. O problema é que o Brasil, com raras exceções, abriu a mão da vida adulta. Deu para trás, como se diz, e confundiu esse recuo com mudança de costumes.
Os costumes não mudaram, desandaram. Há milhões de justificativas para eliminar a sobriedade do ensino e do estudo, para permitir que haja comportamento lúdico na hora da lição. Pode-se invocar qualquer autor, desde Foucault (que falava sobre crueldade e autoritarismo, mas a ausência de regras foi estendido a todo o tecido social, como se pudéssemos simplesmente ignorar as mais elementares regras de convivência). Não é preciso adotar um regime ditatorial e autoritário para viver decentemente. Podemos ser livres sem baixar as calças até aparecer o início do rego, como acontece atualmente, ou os cabelinhos do púbis. Podemos ser livres sem dar sorrisinho em direção aos pobres, aos velhos, aos feios.
A humanidade hoje é prisioneira dos mandamentos da estética. Só vejo pessoas normais, aos montes, por toda a parte, cercadas por gigantescos cartazes de gente sarada, eterna, fantástica. Muitos que serviram de modelo para essa ilusão coletiva voltaram ao seu leito e hoje amargam o fato de terem passado da idade para continuarem modelos, ou do peso para continuarem atletas. Há frustração geral, e temos de suportar a algaravia dos que ainda pensam em se aproximar dos mitos que nos empurram olhar abaixo.
Não se trata de eliminar o conflito, mas trabalhar o conflito a favor da humanidade. No magnífico filme Moça com brinco de pérola (2003), de Peter Webber, com Scarlett Johansson (imagem de hoje) vemos como o mestre holandês Vermeer, sufocado por uma vida medíocre, conseguiu enxergar o que ninguém via na rotina doméstica da sua casa. Ele nos deixou quadros maravilhosos porque enxergava além da conta e não se entregava ao horror social, à pressão familiar, à ameaça de falência. Os mestres nos ensinam e o cinema nos devolve à possibilidade de sermos melhores.
Vermeer foi livre, dentro dos seus limites. É assim que funciona. A vanguarda só pode existir se há um modelo a ser transgredido. Se eliminarmos esse modelo, a função da vanguarda desaparece. Pior: se desmoraliza. Li esses dias uma resenha, escrita da maneira mais tradicional possível (com frases inteiras, palavras conhecidas, sintaxe, gramática etc.) incensando um autor de vanguarda, que a tudo transgredia. Queria ver a resenha usando os mesmos expedientes do autor.
Por que se explica de maneira tradicional o que é fora de esquadro? Porque tudo na vida é conflito e não podemos eliminar os conflitos mais primários, como ser obrigado a sentar direito e a respeitar o próximo. Você não pode viajar, você está duro, os credores batem na porta? Tente ver o máximo possível, descubra a variedade de cores que há numa nuvem aparentemente branca. Encontre a saída para sua jaula, mas não elimine o próximo para provar que és um revoltado.
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