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18 de junho de 2006
O ÚLTIMO DUELO
Alguns goleiros fingem que são livres e vão chutar faltas. Outros não se conformam em ser testemunha a maior parte do tempo
NEI DUCLÓS (*)
O goleiro é um animal enjaulado. Preso pela regra e pela ameaça da derrota, ele usa o pulo para diminuir o sofrimento, jamais para inaugurar a fuga. Por mais que se movimente, sempre volta ao mesmo jugo. Tem apenas uma arma de defesa, o reflexo. O resto, como o golpe de vista, é loteria.
A vida vale pelos gols que toma e não pelos que salva. Sua humilhação suprema é levar um chute certeiro pelo meio dos braços ou das pernas. O frango, aquele lance em que a bola chocha cisca o chão de maneira arisca e é caçada em vão, é a sua punição extrema. Um frango existe quando a bola dribla o goleiro e cobre a área de vergonha. Nem a ilusão de que exista de fato o morrinho artilheiro é capaz de redimir alguém de um frango. Mas há um tipo de jogo que faz justiça a esses condenados. Ele acontece cara a cara, ao anoitecer.
Alguns goleiros fingem que são livres e vão chutar faltas. Outros não se conformam em ser testemunha a maior parte do tempo. Mas assim é o goleiro: um bicho que se rebela e que, sendo o único a poder jogar com as mãos nos limites da área, tem, por vingança, o chute mais potente, que atravessa o campo. Seu objetivo é acertar o seu semelhante, que, no outro lado do jogo, compartilha a mesma maldição. Por isso o jogo da infância, o gol a gol, é único no seu confronto entre duas pessoas que jamais participam de verdade de um time, que é feito de zagueiros, volantes, atacantes, pontas, jamais de criaturas que têm licença para voar. O gol a gol é uma espécie de retaliação para quem nasce goleiro e pode, quando o jogo principal vira pó, fazer gols, um atrás do outro, sem que nada nem ninguém interfira.
O gol a gol é um duelo ao entardecer, quando todos estão exaustos e só sobra fôlego para quem é goleiro. Esse é o momento do desempate, do desenlace do dia inteiro dedicado ao futebol, ou seja, à arte improvável de combinar retas com curvas e encaixar esferas em retângulos. O que não foi conseguido a tarde toda pode ser definitivo agora, quando o sol praticamente se foi e o Cruzeiro do Sul nos cobre com sua madeira de luzes poderosas.
O líder, que está sempre no centro dos acontecimentos, define as regras. Tira o par ou ímpar e começam as apostas. Os goleiros então tomam posição, um frente ao outro, e transformam seus corpos em dorsos de tigres. Os joelhos levemente para frente, as costas curvadas, os braços como cordas tensas, as mãos enormes, os pés prontos para o tiro, o coração um segundo antes do salto e o olhar como a flecha que define uma batalha.
Eles já perderam tudo: a oportunidade de serem atacantes, a meninice que se esvai naquela tarde, a felicidade de continuar vivo no mundo de conflitos dóceis e de paz incomparável. Portanto, se esfacelam nas pedras para ganhar aquela partida. Esse é o momento que possuem para apagar um frango, subir na escala da tribo, poder contar vantagem mais tarde, diferenciar-se da situação de mero coadjuvante, contrariar o que foi comum o tempo todo, e já não há mais tempo, pois se acaba o dia e a infância.
No subúrbio da pequena cidade, não existe luz sobrando, apesar do excesso de estrelas. O breu então toma conta do estádio baldio (conjunto de terra atirada a esmo) e só se sobressai a bola, lua branca pequena e selvagem. Quando a partida segue, com todos os envolvidos, é a hora de marcar pesado, tirar a limpo aquela rasteira, atacar por baixo e por cima. Quando é apenas um gol a gol, é o momento da gargalhada. Pois é tragédia apenas entre os dois contendores, e comédia para o resto. Ninguém leva a sério um goleiro fazendo gol. Por isso essa modalidade não existe em parte alguma, nem em olimpíada e, desconfio, nem mais naqueles ermos perdidos, que foram arrastados para o abismo do nada.
Deveria seguir adiante aquele gol a gol perdido no último tiro. Deveria haver uma nova chance. Porque a noite é imensa, interminável e quando amanhecer já seremos adultos, esses seres sem graça que ficam na frente da televisão olhando com desprezo os goleiros e seus frangos, os goleiros e seus pulos, os goleiros e sua grande vocação para a eternidade.
RETORNO - (*) Esta crônica, publicada hoje, domingo, no caderno Donna do Diario Catarinense, é de minha autoria. Por um lamentável equívoco, o crédito foi atribuído a outro escritor. Felizmente, a versão on-line do jornal já está com o crédito certo. E nesta segunda-feira, será publicada uma errata. Fim do imbroglio.
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