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18 de abril de 2005
TENSÃO NARRATIVA NO ABISMO
O Programador do Traço é aquele cinéfilo aposentado que escolhe os grandes filmes da madrugada e que só tem vez na rede quando todos vão dormir, quando os telespectadores, esses coitados, exaustos de tanto esperar, desistem e assim são abandonados pelos vis comerciantes do Mal, que se dedicam a entupir o horário nobre de produtos intragáveis. Podemos imaginá-lo chegando na Rede Globo nos anos 70, contemporâneo de Sinistrus Joe, e sendo admitido para atender a obsessão do Paulo Perdigão, que exigia a transmissão diária de Shane, o faroeste imortal de George Stevens. Como foi obediente, ficou lá e hoje praticamente vive nos corredores vazios, só como um túnel, como diria Neruda. Mas ele não se atém aos filmes que todos consideram Arte. Sabe escolher, pela milésima vez, um clássico da aventura e suspense, o magnífico Cliffhanger (ou Risco Total), de Renny Harlin, roteiro de Michael France, de 1993, com Sylvester Stallone, John Lithgow, Michael Rooker e Janine Turner. É um clássico porque merece ser estudado em classe como um modelo de narrativa e uma saída para a atual exaustão do folhetim da teledramaturgia.
ROCHA - A confluência dramática é sintetizada no título, que significa um monte de coisas desaguando no mesmo estuário de revelações. O inglês, língua pragmática, tem dessas coisas. Vamos primeiro retaliar a palavra composta, só para atender a natureza da nossa própria língua. Em geografia, cliff é a rocha que, ao resistir à erosão provocado pelo clima, faz face a um abismo. E hanger é um membro sob tensão que mantém suspenso um outro membro. É exatamente o começo do filme: Stallone (esse Bruce Willis de rosto imutável, essa persona que misteriosamente funciona na tela) está suspenso no abismo formado pela rocha diante do nada e logo em seguida está tentando manter grudada na sua mão a mulher do amigo que inapelavelmente cai, enchendo-o de culpa. Agora vamos pegar a palavra toda, que nos remete a um conceito cultural: cliffhanger é um gênero de filme com cenas de grande tensão, aventura, suspense ou alto drama, com um clímax no final. Esse clímax pode ser alcançado no desfecho de uma seqüência. Era o que chamávamos, quando víamos os seriados nos anos 50, de episódio, ou seja, aquele momento em que tudo parece estar perdido para o mocinho, mas que sempre acaba bem. Vejam que maravilha, que achado o título do filme. De que trata o roteiro? Da segunda chance, claro, o tema recorrente do cinema americano e favorito de Stallone (basta ver as séries Rambo e Rocky). O cenário são um microcosmo da América hostil, as montanhas Rochosas geladas e sob intensa tempestade.
GANGORRA - O plot (o gancho, o elo narrativo) é o roubo milionário do Tesouro. Traidores da pátria tentam alcançar 100 milhões de dólares perdidos na neve depois de espetacular assalto seguido de acidente de avião. O anti-herói, que fracassou na cena inicial, está tentando fugir, mas é convocado pelo destino (a Mulher). Consegue assim sua segunda chance para conseguir provar que não teve culpa. A luta entre o Bem (os salvadores não ligam para o dinheiro roubado) contra o Mal (uma das maiores encarnações do nefasto, na pele do comediante Lithgow) desenvolve-se no território da insânia total. Talvez nunca o cinema tenha reproduzido tanta maldade, especialmente quando o vilão mata sua companheira (Janine Turner , excelente) a sangue frio. A queda dos protagonistas funciona como uma gangorra. Os bandidos caem para tentar subir até a Fortuna. Os mocinhos sobem para descer ao inferno da tortura. É um filme sobre profissões com espírito público: o agente que tenta impedir o roubo, realizado por ex-servidores do Estado; os profissionais do resgate que arriscam a vida salvando os outros; o veterano piloto que é pintor amador de quadros e não entende como pode o bem que faz ser retribuído pela extrema vilania. Mas o principal é que jamais, em momento algum, o exagero das ligações narrativas dão bandeira de que estejam fora de lugar. Tudo funciona maravilhosamente. Qual é o segredo?
RECOMPENSA - Tudo vem do roteiro (que teve também a mão de Stallone, segundo os créditos do filme). O herói que tenta fugir, o vilão que quer vingar-se do país, o agente que troca vinte anos de carreira por uma chance de enriquecer, as três malas de dinheiro que são localizadas e perdidas ao longo da trama. Há também as tensões paralelas, que ajudam a inflamar o filme: o companheiro de Stallone (Michael Rooker) que o culpa por ter deixado sua namorada escorregar para a morte, a companheira que cobra atitude, a relação doentia entre a bandida piloto e o chefe dos ladrões, os garotos montanhistas cabeças de vento que são flagrados pelo drama. Nada se perde, nenhuma cena é em vão. Tudo conflui como um delta pelo avesso, que vem do mar, passa pelas inúmeras raízes e vai correnteza acima até a fonte no alto da montanha. A maioria morre. Fica apenas o trio: o herói, recompensado pela sua atitude, a mulher, recompensada por ter seu homem de volta, o amigo, recompensado por ter a vida e a amizade de volta. É um final feliz, cheio de cicatrizes.
DESAFIO - Acaba a sessão, o Programador do Traço apaga a luz da sua sala. Lá fora, o dia está clareando. Ele assume o volante do seu Challenger, idêntico ao carro de Corrida contra o Destino (Vanishing Point), de Richard Sarafian, obra-prima absoluta que estaria nas mãos da Band. Ele quer aquele filme. Como consegui-lo?
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