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16 de abril de 2005
A GEOGRAFIA DA MEMÓRIA
O dia claro de abril, cheio de contrastes de cores, luz e sombra, com vento temperado a velocidade amena, me levam, pela lembrança, rua abaixo até o rio, o pampa, a estrada. As pedras sendo esmagadas pelo tênis, o pé descalço, o sapato velho. A companhia dos camaradas, junto aos quais nada podemos temer, nem os caras da outra zona, nem os cachorros, os loucos, as velhas, os muros. Íamos em direção ao grupo de umbus, árvore de madeira mole e farta sombra, refresco no deserto da fronteira. Agora, rodeado de montanhas e rente ao mar, revejo a sensação daquela vida que continua lá, gravada para sempre na geografia da memória, arquivo vivo de uma esperança que nos liga em algo maior, porque a paz de espírito é a certeza na vida eterna. Dia bom para passeio, para ler na rede, para sonhar e dizer, como Churchill em plena Segunda Guerra, antes de dormir: ora, danem-se todos. O mundo vai mal? O universo não se importa. O que é uma canelada diante da fornalha das estrelas? Filosofia barata, dirão, mas são esses pensamentos, embalados por leituras melhores do que conseguimos produzir, que fazem nosso dia e nos levam para longe, aqui mesmo, onde escolhemos viver.
DESPEDIDAS - Alguém nos leva até a plataforma. Damos um longo abraço e subimos no ônibus. Da janela, vemos a pessoa acenando enquanto damos ré até a reta que nos leva dali para nunca mais voltar. Lindolf Bell pega a pedra pintada de muitas cores, dá um suspiro e diz: Essa é a pedra Açu-açu, ela vai te acompanhar, vai te dar sorte. Estávamos em Blumenau, onde lançamos (ninguém mais lembra isso oficialmente) o Jornal de Santa Catarina. Decidi que era um escândalo que um jornal local não fizesse uma ponte com o grande poeta dos versos ditos na praça, na rua e que vivia de sua galeria de arte junto à esposa Elke Hering Bell. Convidei-o para visitar a redação e a escrever para o jornal. Ele ficou entusiasmado, generoso como era. Conseguiu trazer Hair para a conservadoríssima cidade em 1971 e quando todo mundo surgiu nu no palco foi o primeiro a levantar-se e a aplaudir. Lindolf Bell é inventor de uma modernidade que ainda nos faz falta. Nunca mais vi o poeta depois que ele me presenteou com aquela pedra da sorte. Morreu na década seguinte e hoje é lembrado pelos seus conterrâneos com carinho e admiração. Convivi com as melhores cabeças, porque tive sorte nesta minha passagem pela terra. Tarso de Castro me encontra na rua e eu abraço seu corpo muito magro. Senti seus ossos quando apertei-o, ele outrora tão influente e temido e agora ali, exangue, sofrendo longo martírio de saúde. Vi seu rosto encolhido depois, no velório, antes de partir para ser enterrado em Passo Fundo. Quando vivemos um dia claro de outono, devemos lembrar o que nos brindaram com sua presença e nos fizeram melhores do que somos. As pedras do rio ringem quando colocamos nela nossos sapatos de jornada. É dia de pescar.
CULTURA - O caderno cultural do Diário Catarinense, editado por Dorva Rezende, está magnífico neste sábado. Traz, entre várias preciosidades, uma resenha sobre os lançamentos de literatura japonesa, assinada pelo escritor Carlos Henrique Schroeder, que é um primor de resenha. Pois bate sem dó no que ele acha sem qualidade, destaca as obras-primas, pontua o texto com humor, dá um panorama completo. Diz o jornal que Schroeder é dramaturgo, está lançando seu sétimo romance (A rosa verde, EdUFSC/ Unerj) e vive em Jaraguá do Sul. Brasil, terra de escritores. Pouco conhecidos, que cruzam décadas à sombra de árvores centenárias do seu talento e que pouco chegam ao público. Como Sonia Coutinho, da qual estou lendo seu Atire em Sofia (Rocco), livro de 1989 que é uma sucessão de surpresas e invenções literárias. Marco Celso Viola me avisa que terminou seu segundo romance, com um título de arrepiar que não vou dizer só para depois, quando for editado, curtirmos o impacto desse fazedor de gestos e de palavras. A literatura, oculta ou não, nos leva de volta para o dia perfeito, dia da grande corrida aqui na ilha em que quase três mil atletas vão palmilhar 150 quilômetros, o que acho um exagero, mas tem força para tudo. Ler, escrever, viver. Tudo tão pouco, tão passageiro. Há uma estrela em fogo que se aproxima. Venha, constelação divina, nos abrase com sua grandeza, para que tudo na terra seja vista por nossos olhos cheios de fé, que inventamos com nossa teimosa alegria.
AMAZÔNIA - Médicos cubanos são expulsos de Tocantins, mas médicos do Arizona estão na Amazônia fazendo turismo social. Aparece na TV o americaninho politicamente correto abraçando a criança pobre que será operada por ele. Os americanos nos extorquem os tubos em juros da dívida externa, obrigam nosso governo paga-pau a desviar dinheiro do social para encher as burras dos banqueiros, e depois envia os mimosos sentimentais que nos enxergam como macacos incompetentes. Ao mesmo tempo, querem transformar a Amazônia em território de interesse internacional, fora da jurisdição brasileira. Nosso governo já deu a bandeira branca ao transformar nosso território na fronteira com a Venezuela e a Guiana em nação indígena, portanto, nação estrangeira. Sou lembrado que um míssil tem muito menos resistência se for disparado do Equador. Faz sentido? Com toda a civilidade: por que não vão fazer turismo social na véia, peçam desculpas aos cubanos e nos devolvam a fronteira perdida?
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