5 de abril de 2005

A INFÂNCIA É UMA CATEDRAL




Hoje entrei na catedral de Florianópolis e ela estava vazia, sem bancos nem sua principal imagem, o da Fuga do Egito, que está sendo salva da destruição dos cupins. Existem grades para impedir as passagem dos fiéis, que ficam assim confinados na entrada enquanto olham a grande nave sem nada. No ambiente de reforma, há apenas a esmola dos vitrais. Lembro a vez que revi as imagens da catedral de Santana, de Uruguaiana, em fotos feitas e enviadas, a meu pedido, por Anderson Petroceli. Me demorei sobre aquelas imagens que construíram minha infância. Especialmente o da Nossa Senhora menina, ladeada por Joaquim e Ana. Depois, na visita que fiz à minha cidade, entrei naquele lugar com o coração na mão. Ali assistíamos a missa das seis, nos invernos escuros, nas manhãs de domingo, participantes que éramos de uma promessa feita pela minha mãe e sobre a qual ela guardava segredo. Havia também a missa das oito, para as crianças. Saíamos depois de uma hora cantando com minha mãe estarei, uma das inúmeras canções religiosas que se perderam. Hoje, época da hegemonia da igreja carismática, só existem cantos com os quais não me identifico. Onde está o prometi no meu santo batismo, queremos Deus e outras preciosidades? O pior é que cantam o pai nosso com as palmas abertas e separadas, o que para mim é um sacrilégio, pois a oração deve ser dita com as mãos postas.

LATIFÚNDIOS - Leio palestra de notório acadêmico e ele diz que a informática é capital acumulado, ou seja, é suspeita, pois gera subemprego. Grandes pensadores, no Brasil, às vezes tocam nos limites da idiotia. Isso porque são hegemônicos, como os coronéis. Li várias vezes em trabalhos universitários importantes que as coisas que estavam sendo estudadas e descritas só poderiam ser daquela forma e de nenhuma outra. Nos latifúndios do saber, não sobra espaço para a democracia da razão. A racionalidade, assim como a espiritualidade, faz parte do humano, ou seja, está à disposição da contradição e da dúvida. O que gera subemprego são as políticas públicas, não a informática. Cartacapital traz na capa o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que está sob suspeita do Ministério Público por desvio de verbas. O que gera desemprego é a corrupção dos grandes, não a informática, que estaria na mão de alguns supercomputadores nos Estados Unidos e não sei mais onde. Informática é como livro, tem autoria, dissemina-se em rede, está a serviço das pessoas e não de sistemas fechados do pensamento. Lembro a igreja que nos formou: era sólida, um referencial, mas profundamente democrática (rigorosa, mas tolerante). Os irmãos maristas tinham postura seríssima, mas não abriam mão do bom humor. Havia pregação religosa pesada em aula e nas missas, mas no recreio relativizávamos tudo. Por que? Porque vivíamos em vários ambientes de formação: igreja, colégio, família, recreio, rua, quadras de esporte, bailes, clubes.

VOCAÇÃO - Nascemos na democracia e essa é a nossa vocação. A ditadura é uma manifestação tardia e por isso não nos conformamos até hoje. Os padres, como chamávamos os irmãos maristas, raspavam suas longas batinas na hora do Ângelus, na laje trabalhada do Colégio Santana (sempre ela, a mãe de Maria) em frente à minha casa. Havia respeito. "Ofendeste o professor?" perguntou meu pai um dia na hora do almoço. "Pois atravesse a rua e vá pedir desculpas". Na minha casa havia terço, medalhinhas, imagens de santos, cruz. Meu pai, ateu, fazia olho branco. Era democrata, fazia parte do acordo de casamento. As mulheres colocavam seus véus de renda, coloridos, brancos ou pretos e assistiam a missa. Os sermões eram ditos no púlpito, de madeira, que era acessado por uma escada em espiral. Na minha visita à cidade, Anderson me levou para o outro lado do rio e lá em Libres conheci a catedral do lado argentino. O púlpito de madeira estava lá.

SACRÁRIO - Antes de morrer, minha mãe colocou seu véu, na cama do hospital, confessou e comungou. Depois abraçou e olhou longamente cada um dos filhos, despedindo-se. Deitada, ficou com a cabeça virada para a cabeceira e sua respiração foi se indo aos poucos. "Sua mãe só fez o bem", nos disse a freira que a assistia. Em memória dos pais, da igreja que nos formou, da nação soberana que nos deu tudo, temos a obrigação, pelo menos, do testemunho. Meninos, eu vi. As duas catedrais, a de Florianópolis e a de Uruguaiana, estão precisando de reforma. O peso dos anos, dos sinos, das orações nos rondam, com suas pedras e vitrais. Glória ao Papa que se foi, que manteve viva a Igreja que precisa ser como ele, mais atuante, mais aberta, mais democrática, mesmo sendo fiel a seus dogmas e princípios. O espírito humano é dialético e aspira à grandeza. A mediocridade, a idiotia, a bizarrice, a idéia fixa, são o Mal que nos persegue. Mas temos um estandarte e um coração de ouro. De mãos postas, com uma fita enorme no braço, toda com apliques dourados, carregando uma imensa vela, pé ante pé chegamos ao sacrário. É quando tocamos a veste dos anjos.

RETORNO - 1. É bom que se repita para que o Google não informe errado: Nei Duclós é autor do verso "estar a salvo não é se salvar", que faz parte do poema Salvação, do meu livro Outubro, publicado em 1975. O verso foi citado, com crédito e tudo, por Bebeto Alves na sua bela e antológica faixa Pegadas. Pois bem, uma professora emérita (num site de comunicação!) atribuiu o verso a Fernando Pessoa. Forças! 2. Chovem análises chamando o Papa de midiático e medieval. Queriam que a Igreja continuasse se manifestando por papiros! Quem é medieval?

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