Nei Duclós
Ao homenagear escolas poéticas abandonadas do passado,
principalmente via soneto, sempre sustentei a necessidade de uma poesia onívora
que não jogue fora de maneira superficial as conquistas do passado, assumindo
um vanguardismo vazio e superado. Pois bem, há tempos isso foi decifrado com
rigor e clareza por Sérgio Buarque de Holanda no seu ensaio de 15 páginas sobre
Manuel Bandeira, do livro Cobra de Vidro (Perspectiva, 1978).
Ele chama a atenção para o abandono de todos os terrenos
comuns e os critérios de validez objetivos e universais da poesia que, como
qualquer outro jogo, tem suas regras traçadas que não podem ser transgredidas
impunemente. Desprezar essa realidade pode jogar o poeta num solilóquio, o
desesperado monólogo consigo mesmo, gerador de solidões e monstros. Foi o que
aconteceu quando os poetas reagiram contra uma uma lei aceita automaticamente
como um colegial que decorou a lição , o que resultou no culto à espontaneidade
irresponsável e sem limites. Manter-se nessa postura negativa quando já não
existe mais o que negar leva à facilidade e ao desleixo, que são substitutos
pobres da rotina formal
Como resolver esse impasse? A solução é adotar uma opção
livre e consciente em relação àquelas regras de modo que se transfigure o que
era universal e anônimo numa criação pessoal interessante. Foi o que fez Manuel
Bandeira, que manteve sua casa na ilha deserta limpa e bem arrumada, para usar
uma imagem de W. H. Auden sobre o risco de se optar pelo verso livre, que seria
idêntico à vida isolada de um Robinson Crusoé.
Para decifrar esse objeto selvagem – a poesia de Manuel
Bandeira em relação às suas influências e aos seus pares – SBH faz uma operação
cirúrgica. Começa contestando – logo quem! –Mario de Andrade (apesar de cumular
de elogios o autor de Paulicéia Desvairada no seu estudo sobre o mesmo poeta),
que via por exemplo no poema sobre Pasárgada uma cristalização superior do
vamborismo nacional e popular, visível nas manifestações do folclore. Essa
“extraordinária generalização” não agrada SBH, que prefere detectar no
simbolismo francês e no romantismo alemão o toque de influência mais
significativo, mas com forte carga de independência em relação a esses
movimentos, que pouco interferiram na produção poética brasileira.
Existe a mesma independência em relação aos modernistas, que
reconhecem em Bandeira o pioneirismo do verso livre, já que Cinza das Horas é
de 1917, cinco anos antes da Semana de 22. O que invoca SBH nessa sua abordagem
é a singularidade de Bandeira em relação ao todos, fluindo de maneira
trabalhada seu lirismo transgressor, em que jamais se entrega às formulas
acabadas, antes as usa de maneira pessoal criando impactos no leitor para tirar
de sua arte qualquer resquício de malemolência ou facilidade. A unidade
superior da obra pautada pela inteligência da sensibilidade define o perfil do
grande poeta, que se autodefinia menor “no bom e verdadeiro sentido da
expressão contra as limitações impostas por tal circunstância”.
É um gênio decifrando o outro, Vale a leitura, que tem muito
mais.
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