Hoje encerro a série de três artigos sobre o livro A terra dos longos olhares, da Editora Holoedro, cuidando de alguns textos que ficaram de fora dos anteriores e me aproximando um pouco dos poemas que constam nesta antologia. Vou reunir mais tarde tudo num só ensaio, que será publicado no site. Por enquanto, a abordagem sobre identificação e estranhamento, que me pegou pela unha a partir de ontem, não provocou nenhum comentário, sinal de que a fronteira aguarda o desfecho das divulgações para debater os temas abordados pela crítica, da qual, a meu modo, também faço parte. Vamos começar por No sul, há muito tempo, de Tabajara Ruas, que é exemplar do que procuro dizer sobre esta publicação, que nos leva, como toda fronteira, até o limite entre o que estamos acostumados a ver e ser e o que nos espera na dobra de uma esquina ou na curva do tempo.
RASTRO - De que trata o conto do Taba? De uma perseguição. Um cavaleiro vindo de longe pergunta por um fugitivo. As pessoas consultadas despistam e ele se vai. Mas o procurado está no meio de quem negou a identidade do foragido. Ou seja, existe uma comunidade, gerada pela guerra, identificada como uma tropa, e situada no fim do mundo. O general a paisana chega sem ninguém saber quem é. É uma identidade oculta, que provoca estranhamento. Está buscando uma pessoa para tratar dos cavalos usados na luta. Mas essa pessoa está amarrada, pronta para morrer, só que o estranho não sabe quem ele é. O rastreador procura um índio, e o prisioneiro do posto militar é também um índio. Os dois são a mesma pessoa, mas o perseguidor não sabe disso e acaba indo embora, deixando a vítima para ser esfolada e perdendo assim a chance de conseguir o que procura. É um feixe de identidades ocultas, que se retorcem em cenas de estranhamento: visitante x acampados, índios x soldados, rastreador x fugitivo, militar fardado x militar a paisana. Em poucas páginas, Taba reúne o principal conflito de uma fronteira: identificação x estranhamento.
PASSEIO - O casal de Passeio no povo, de Colmar Duarte, vai no mesmo rastro. O peão que ajuda a moça pobre e torna-se seu amante descobre que há um outro, que o ataca numa tocaia. Ele quer contar a verdade para o capataz e justifica-se dizendo que jamais falou mentiras. Mas quem vai ouvir sua história é o irmão do outro, que acabou assassinado. Onde colocar a verdade, o que fazer com a coragem, tão familiares e que acabam se defrontando com uma situação de total estranhamento? O atacante que erra pênaltis em Sibila o instrumento..., de Elder Oliveira, por ser ruim de bola, não faz parte da confraria do futebol. Os torcedores querem enviá-lo para jogar rugby. Em O visitante ilustre, de Genaro Alfano, o paisagista de Napoleão, Alexandre Bonpland tenta se refugiar no Brasil, mas não é aceito, e acaba indo para o outro lado da fronteira. Pessoas de fora, insumo principal dos habitantes da fronteira, são a encarnação do estranhamento que chega de longe e não é compreendido.
ALEGORIAS - No poema Vida, Luis Humberto Janceski tece um lamento pela biografia não realizada plenamente, ou seja, pela perda da identidade ("Minha vida é certa/ mas está errada"). A vida normal, aceita, certinha, não serve ao poeta. Ele é o estranho de si mesmo. A busca de uma identificação encontra, em Rubens Montardo Junior, a relação a dois. Para ele, todo verso é o último, e o amor é a intensidade que falta a essa vida normal. Nas canções de Bebeto Alves, personagens como o sambista naval ou o louco Loló trazem para a fronteira, território do estranhamento, as pessoas não codificadas pela mesmice e que batizam a terra com outras alegorias. Em Ubirajara Raffo Constant, a homenagem ao carpinteiro Alípio é o reconhecimento da arte de um ancião que faz ponte com a infância. A identificação entre as duas pontas do tempo é feita pela arte, um ofício à margem, mas que forma consciência, caráter e inventa escritores. Há segredos no espelho de Tukano Neto, mas eles não podem ser revelados. Amor, tragédia, sonho: não há o que mencionar neste silêncio forçado, imposto pela mesmice e contra o qual o poeta se rebela. A saudade, tanto em Tukano Neto quanto em Rafael Gomes, é o tempo cobrando a conta da vida que se esvai na normalidade e que fustiga a emoção e o gosto jamais saciado da aventura.
SOLIDÃO - A contrição de poetas urbanos, que sofrem diante da tradição do movimento e da luta, faz parte desse universo confinado, dividido entre normalidade e ruptura, entre ausência e fantasia. Onéu Prati Molina procura trazer a figura do poeta para essa vida igual em tudo, para que possa explodir. Marina Coello aposta na ternura feminina para contrapor-se a essa parede que cerca a palavra, enquanto Luiz de Miranda, que neste 2005 chega aos gloriosos 60 anos de idade, nos brinda com uma Pequena elegia do abandono, onde prefere a solidão à companhia fria. Miranda quer ficar sozinho se não houver esperança de encontro. De sua coragem deixai-me que lhes diga: é um poeta único, que luta todos os dias por uma vida fora das garras, das correntes. Carlos Omar Villela Gomes, ao lembrar Dos que se foram, dá o testemunho dos parentes mortos, e convoca a ressurreição. A poesia da fronteira, assim, tece a vida paralela, a que poderia ter sido, banhada de impossibilidades, mas que alimenta o sonho par enfrentar a dura rotina diária. É uma alternativa à identificação dos hábitos e uma proposta de estranhamento por meio da palavra emocionada.
RETORNO - Por último, mas não menos importante: as fotos da capa são todas de Anderson Petroceli, o fotógrafo maior da fronteira. O entardecer no pampa e no rio, e o dia claro, dividido entre rebanho e nuvem, convidam o leitor para esta viagem gratificante.
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