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18 de setembro de 2005
O FIO SOBREVIVE À RUÍNA
Vejo tardiamente Despedida em Las Vegas (Mike Figgis, 1995), que deu Oscar de melhor ator para Nicolas Cage e deveria dar o de melhor atriz (apenas indicada) para Elizabeth Shue. Cage me invoca. Tem todo jeitão de um mau ator, com sua lombrosidade mofina e fora de esquadro. À primeira vista, parece que é ambicioso demais para o que poderá produzir. Noto nele sempre o esforço se sobrepondo ao talento. Mas são impressões erradas. Ele conseguiu se impor, e nos brinda com uma performance inesquecível ao interpretar o roteirista desesperado que assume um compromisso com a morte. Escolhe o cenário ideal: a não-cidade Las Vegas, inventada pela Máfia, concentração de luzes artificiais, eventos sacanas, prostituição, jogo e álcool. Mas topa com algo que não pode controlar: o sentimento, que sobrevive ao seu suicídio e mantém-se firme apesar da ruína de vidros estilhaçados, garrafas vazias, hotéis sinistros, condomínios repressivos, surras covardes, delírios e coma. O filme funciona como uma fábula sobre o desespero provocado pelo capitalismo como religião, tema de Michael Löwy no caderno Mais!, da Folha deste domingo.
TURISMO - John O'Brien, que fez a autobiografia de onde saiu a história, suicidou-se duas semanas depois do início da produção do filme, o que quase fez o diretor Figgis desistir do projeto (só continuou para homenagear o autor). A religião do capitalismo não dá folga em Las Vegas, cidade que é pura representação, não tem existência real, é apenas uma composição de canais do dinheiroduto. Para começar, não possui moradores, mas exploradores do turismo e turistas (e bandidos que gravitam em torno). O culto ao dinheiro, exposto nas máquinas caça-níqueis e nas mesas de jogo, serve para iludir a mesmice da vida sedentária, que ali busca refúgio num sonho de lazer, consumo e enriquecimento fácil (portanto ilícito, se for seguido a ética das origens do capitalismo, descrita por Max Weber). Ao redor, está a prostituta, o cafetão, o assassino, o gerente do hotel. O roteirista que firma um pacto com a morte entrega-se a esse desespero provocado pela culpa, de um sistema com práticas "que não conhecem pausa" como escreve Löwy no texto do Mais!, em que analisa e desenvolve um insight de Walter Benjamin fundado em Weber. Na mesma edição da Folha, Elio Gaspari assume sua profissão de fé: "O que falta ao Brasil é o capitalismo, regime que enriquece o virtuoso e destrói o incapaz", escreve Gaspari em sua coluna. Ele quer assim opor-se à corrupção como sistema econômico, mas acaba se entregando, pois acredita mesmo que exista virtude no capitalismo. Mike Figgis e John O?Brien, que são do ramo, ou seja, moram no país verdadeiramente capitalista, sabem que não. E expõem os seres humanos em fase terminal, que não conseguem se livrar da culpa dessa religião universal e acabam sucumbindo a ela. A única coisa que fica firme é o sentimento, que não pertence ao capitalismo, mas à parte derrotada da história, a humanidade. Esse fio sobrevive à ruína que toma conta do rosto de Elizabeth Shue, a atriz encantadora que foi par de Michael Fox em De Volta para o Futuro II e III e contracenou no filme de Woody Allen, Desconstruindo Harry. Esse rosto que confessa o amor é o legado de um filme demolidor, que mostra a resistência do humano quando tudo parece perdido.
GAIVOTA - Um escritor habita sua criação e dela depende para sobreviver, literalmente. A conexão entre a dureza do ofício e sua transcendência, como nota Walter Galvani em Crônica: o vôo da palavra (Editora Mediação, 119 páginas), é a arte que leva uma vida para atingir o prumo. Nem sempre consegue. A maioria das vezes, nem decola. Quando enfim sai do chão, o sonho pode ser abatido em plena evolução. Mas não basta equilibrar-se no ar, é preciso colher o peixe (o assunto, na metáfora de Galvani) e não deixá-lo cair. O leitor é o espectador que segue todo o processo. Vê quando o escritor se posta para pescar o tema, segue a linha do vôo em direção ao objetivo, nota como o assunto se retorce no bico do virtuose e é testemunha da refeição rápida que a crônica permite. Tudo acontece em poucos segundos. Fica a impressão encantada diante da competência do criador. Mas, aceitando o convite de Galvani para o leitor se manifestar sobre o assunto que é alvo da sua metáfora, acredito que à crônica faltaria o essencial. Na maioria das vezes, faz parte de um espaço remunerado e, portanto, limitado por contingências do veículo, regido por normas de mercado. O salto que ainda está para ser dado é essa dose de verdade que desnuda o escritor e que é a garantia do romance, do teatro, do conto, do poema. A crônica pode ser vôo, mas também não poderá deixar de trair o próprio sossego. Galvani nos dá um roteiro seguro de grandes cronistas neste seu livro que é uma aula de história e do ofício de escrever. E nos leva, pelos desdobramentos de um leitura enriquecedora, para outras paragens, os limites dessa arte, o mergulho possível do cronista na própria maldição de estar vivo. A crônica, quando expõe o que o autor esconde na maestria da palavra, pisa no pântano da criação literária sem concessões. Assim podem encarnar o medo diante das gaivotas de Os Pássaros de Hitchcock, que não buscam as iguarias do mar, mas arremetem contra o capitalismo predador como a representação de uma culpa impossível de expiar.
RETORNO - A editora Boitempo, que traz Löwy para o Brasil (dias 27 a 29, na USP, dia 30 na PUC, além de seminários em Araraquara e Campinas em outubro, eventos que eu não gostaria de perder), está completando dez anos. Parabéns à maravilhosa editora, rara no país desconstruído pela barbárie.
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