9 de setembro de 2005

O ANALFABETISMO É FRUTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS




O Brasil tornou-se perigoso na Era Vargas. Virou um país viável, que se industrializou e cresceu no vácuo deixado pelas potências em guerra total de extermínio. Nossa cultura, criação sofisticada a partir das vivências populares, deslumbrou o mundo. O que Villa-Lobos fez com o folclore e com a tradição da música erudita é obra para todos os séculos. O que Vinicius de Moraes fez com a afetividade, marca registrada do país continente, é inspiração nacional. O que o romance de vanguarda fez com as linguagens arcaicas, via Guimarães Rosa, é para deixar qualquer grande escritor estrangeiro no chinelo. O que nosso romantismo engendrou de harmonia no mundo brutalizado, é instrumento de paz. O quanto de intelectuais de primeira grandeza as escolas públicas e gratuitas geraram em 34 anos de grandeza (1930-1964) são as bases do pensamento brasileiro livre e independente (de Celso Furtado a Darcy Ribeiro). Quando a poeira radioativa baixou sobre a humanidade ferida, era preciso destruir o país. Foi o que fizeram. É por isso que temos 68% de analfabetos funcionais. Estamos cercados pela idiotia, a sociedade ágrafa manipulada por políticas públicas perversas.

SUCATA - Millor Fernandes, nascido em 1924, e, portanto, estudante do início dos anos 30, tem só o primário. Cartola, que fez versos maravilhosos a partir do que aprendeu nos primeiros e únicos anos de estudos, é símbolo desta época de glória. O que fez o regime de 1964, que até hoje está em vigor? Acabou com a educação. Gerou milhares de escolas particulares fajutas, acabou com a carreira de professor (que na época em que estudei no primário, anos 50, tinham dignidade social e econômica). Sucateou a universidade pública, que se mantém trôpega (a UFSC, aqui, está em greve). Ninguém passa no exame para a ordem dos advogados em São Paulo (apenas 5%). Faculdades médicas geram monstros, Mengels assassinos. Engenheiros que não sabem aritmética (como prova uma recepcionista que eu conheço, que tem professor engenheiro que erra em contas de diminuir) fazem cair pontes e edifícios. Num inverno de cinco graus, o motorista do ônibus onde viajo ligou a toda o ar condicionado no frio. Gritaram para ele, mas não entendeu. Tive que ir lá e expliquei como funcionava o inverno. Ele concordou, mas avisou: se ficar muito quente, eu religo, ok? Isso é analfabetismo funcional. As pessoas obedecem ordens. O cara foi obrigado a ligar o ar no verão, chegou o inverno, não houve contra-ordem, ele continua ligando. Por que o senhor fica fazendo barulho às seis da manhã de domingo? perguntei em São Paulo para o porteiro do prédio em frente minha casa. Estou fazendo minhas oito horas, foi a resposta. O presidente da Câmara é Severino Cavalcanti. O presidente da República se orgulha da própria ignorância. Chega?

VOCAÇÃO - O que fazer do nosso sonho, o de cumprir nossa vocação de escritor, viver do nosso ofício que depende da alfabetização dós outros? Resistir, lutar. Isso não foi você que escreveu, me diziam quando era adolescente. Não acreditavam que alguém pudesse nascer com a queda para a palavra, aproveitar ao máximo o aprendizado na escola e gerar algo diferente, original. Olha só a poesia que ele fez, debochavam. Sim, existia analfabetismo naquela época. Mas nada que se compare ao que temos hoje. Nos anos 60, a luta dos estudantes era contra o sucateamento da educação superior, armada pelo acordo Mec-Usaid, imposição americana aceita pela ditadura fabricada pelos poderosos (as passeatas não eram a favor do Vietcong, como traíam as lideranças estudantis do tipo José Dirceu, o que esvaziou o movimento e decretou sua derrota). Não interessava ter um povo preparado, um país livre, uma nação grandiosa. Este território serve para abastecer a sanha assassina dos países ricos e os aproveitadores, de todos partidos e classes, que se debruçam sobre o suor do povo. Aqui não há nada, está tudo seco, disse ontem no Jornal Nacional a ex-retirante que voltou de São Paulo para uma cidade no sertão de Pernambuco. Mas a gente vai levando. Aqui as pessoas se ajudam, lá não. Lá é muito pior.

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