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19 de setembro de 2005
O ATOR ABRE O JOGO
Nei Duclós
Miguel Ramos ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante por sua participação em O Cerro do Jarau, de Beto Souza nos festivais de Recife e Gramado deste ano. Por coincidência, é meu amigo desde a adolescência e meu conterrâneo. Aproveitei a proximidade para entrevistá-lo com exclusividade para o Diário da Fonte e o resultado está nesta edição. Trata-se de um depoimento esclarecedor sobre a difícil arte de atuar, feito por um especialista vocacionado. Vi Miguel no palco ainda muito menino interpretando um engraxate no palco do Colégio Santana, entre muitas outras performances. Depois fui na fila do gargarejo para me deslumbrar com sua atuação premiada pela APCA (revelação) em Mockimpot, de Peter Weiss, em 1975, em São Paulo. Depois caí para trás com seus cinco inesquecíveis minutos em Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas, que incluiu Miguel no seu novo filme, O general e o negrinho, que está já em produção e será filmado este ano. "Atuar é um grande jogo"e "ator é uma profissão onde não se ganha promoção por tempo de serviço" são duas frases deste depoimento de Miguel, enviado diretamente de Uruguaiana, território que, segundo ele, é a "fonte de nossas inspirações".
1) Miguel, você já sabe o que eu acho da sua posição no mais alto patamar da arte de interpretação no Brasil. Esse reconhecimento vem de longe, desde quando você ganhou o prêmio de ator revelação do teatro em São Paulo, na década de 70. Por isso eu pergunto: quando cairá a ficha dos diretores para colocar você como principal protagonista de umn filme?
MR- A grande questão para o ator, a questão fundamental, a única questão que tem essência para o ator é ter personagem.
A ausência de personagem é o limbo. A permanência dessa ausência é a morte.
O personagem para o ator é como o instrumento para o músico.
A colocação do personagem na trama, se é protagonista ou não, é uma questão secundária.
Em essência é isso.
Agora, para a profissão é importante ser protagonista. É como ter um prêmio.
E nesse sentido já fui contemplado com um convite e se tudo continuar fluindo como vem, em 2006 estaremos rodando um filme, com um roteiro profundamente humano que sei que vais gostar, onde tenho um personagem protagonista.
Mas já fiz personagens de cenas que não duraram mais que cinco minutos. Mas foi o suficiente para construir o personagem. Cinco minutos, ou menos, são suficientes para o ator se realizar.
O personagem, independente da posição que ocupe na trama, é o lugar onde de fato o ator põe sua alma e dá sentido a sua existência.
2) Você voltou a Uruguaiana por motivos que desconheço, mas posso adivinhar. A árdua luta no exercício desse ofício duro, a vontade de abraçar a terra natal na vida adulta, entre outros motivos. Praticamente recolhido na fronteira, você volta com força total a partir de Netto perde sua alma e agora com Cerro do Jarau , onde você levantou prêmios de melhor coadjuvante. Isso prova que o talento jamais poderá ficar oculto e que nada pode contra o carisma e o destino? Responda sem ter medo de assumir nenhuma "máscara", pois você merece as homenagens ao seu trabalho.
MR- Na história da interpretação, não são raros os casos de grandes atores que acabam na obscuridade e morrem no anonimato, quase sempre de tristeza.
Essa é uma questão que só posso responder com outras perguntas.
Quem de fato, escreve o roteiro de nossas vidas?
Além daquilo que compreendemos como o plantio e a colheita, ação e reação, quem de fato é o jardineiro de nossa existência?
As fatalidades da vida quase sempre escapam ao controle humano e não cabem em nossa racionalidade. Muitas vezes as coisas acontecem de maneira inesperada.
Quantos anos de silêncio, de dor e agonia têm que preceder um reaparecimento brilhante e de reconhecimento?
Aqui na fronteira, como em outras partes do mundo, conhecemos o ditado: Deus escreve certo por linhas tortas. Eu digo: às vezes por linhas tortas, mas sempre imprevisíveis.
Essas questões nos levam a refletir mais profundamente sobre as Grandes Questões, sobre o sentido da vida, seus movimentos e viravoltas. Questões que, geralmente, geram mais perguntas que respostas; e respostas que geram novas perguntas.
3) Divido os grandes atores entre monstros e cavaleiros. O primeiro, categoria a qual você pertence, assume a criatura, enquanto os outros cavalgam o personagem. Você prova que interpretar não é fingir. O que você diz sobre sua arte e sobre seus métodos? Fale sobre seus personagens.
MR- O que diferencia um ator de outro é a intensidade. Intensidade e envolvimento com o personagem. Isto é o que determina a qualidade de um trabalho. Assumir um personagem sem buscar resultados, Não lançar mão de maneirismos e métodos, mas manter o foco na intensidade.
Para mim o processo de criação é totalmente caótico, anárquico, sem compromisso com qualquer metodologia a não ser com a intensidade, com as emoções resultantes da convivência com o personagem.
Ninguém é, de fato, "formado em interpretação, em ator". A experiência de palco e interpretação é nula. Não se pode armazenar experiências com personagens. Cada personagem é diferente, é único. Ator é uma profissão onde não se ganha promoção por tempo de serviço.
O artista nunca se pode julgar uma estrela em si mesmo. Um novo personagem é algo inesperado, cheio de surpresas. Atores veteranos podem errar, e erram, exatamente por isso, por esta falta de precisão, de previsibilidade. O que gera a qualidade e diminui as probabilidades de erro é a intensidade.
O ator nunca pode esquecer do aspecto lúdico da interpretação. Atuar é um grande jogo. Você pode dignificar ou sacanear um personagem. É um jogo...
Esse caráter lúdico da interpretação, num drama, por exemplo, é que caracteriza a limitação do sofrimento aos contornos do personagem. Fazendo Pedro, o macaco de Kafka (Informação para uma academia, de Frans Kafka, 1990) eu sofria enquanto vivia o personagem, e o grau de envolvimento com o personagem e a intensidade com que eu vivia isso é que propiciava a qualidade àquele momento. Esse é o jogo. . .
Assim foi com o pedreiro do Muro de Arrimo (Luiz Queiroz Teles, 1976), com o Pepino, de Mockimpot (Peter Weiss, 1975), apesar de serem personagens dramáticos, foram construídos com leveza. O próprio Correntino, agora do Cerro do Jarau, apesar do sentimento de bandido e do caráter sórdido, tinha uma leveza, uma simpatia que poderia não existir. Aí está o lúdico da interpretação.
A emoção é que determina a máscara. Ser ator é uma profissão paradoxal porque ele se realiza sendo o que não é. Mas no meu caso o personagem é construído com base na minha pessoa. Eu empresto minhas observações, maneira de ver e sentir o mundo, minha memória emocional ao personagem. Eu, por fim, durante o espetáculo, sou o personagem. E isso só é possível pela intensidade que deixo imprimir no processo.
4) Você retomou sua arte enquanto abraçava a carreira política. Foi vereador agora é secretário de cultura. Ser político faz parte da interpretação, você cria um personagem, fundado na ética e na transparência? Essa persona pública é um dos aspectos de sua personalidade ou faz parte do trabalho do ator que não esconde os muitos Miguel Ramos que existem dentro de você?
MR- Ética e transparência são valores que herdei do meu pai.
Agora, no mundo político, na atividade política, todo dia quando acordo tomo um copo, dos grandes (rsrsrs), de hipocrisia. Só assim posso suportar a carga. Ponho meu narizinho invisível de clow, minha maletinha de bem-aventuranças e vou campante e radiante para meu ofício.
5) Uruguaiana apesar de estar afastada, é uma cidade que projeta vários autores e artistas de nível nacional e internacional. A que se deve essa força? O que existe em Uruguaiana de especial?
MR- O Tejo é mais belo que o rio que passa pela minha aldeia. O Tejo não é mais belo que o rio que passa pela minha aldeia, porque o Tejo não passa pela minha aldeia.
Eu acho que passa por essa intimidade com os fenômenos da paisagem que Fernando Pessoa sintetiza de forma genial em seus versos.
Esse misticismo fundamentalmente telúrico. Essa corrente telúrica enorme. O contato com o vento, a vastidão do pampa, a grandeza do pôr-do-sol junto ao rio Uruguai, o azul profundo do céu à noite, a paisagem imensa.. .
A educação formal de qualidade que tivemos.
O paradoxo permanente desta cidade que é muito rica e enormemente miserável. São muitos fatores.
Somente o caos e o paradoxo, só a contradição podem produzir estruturas de qualidade.
Somente a observação desse caos e desse paradoxo é que faz germinar e alimentar o talento. O talento é o instrumento da alma pra promover o amor, a compaixão através da arte, como forma até inconsciente de reparar essas contradições. Esse amor, essa envolvência com o que está perto é que torna os artistas universais. Isso não é novo, já foi dito e redito. Mas é isso que penso e sinto. . . E sei que os artistas e amigos da nossa geração (como você, o Luiz de Miranda, o Tabajara Ruas e tantos outros. . .) e mesmo os consagrados uruguaianenses como Alceu Wamosy e Gonçalves Viana, partilhavam desse sentimento. E que não é meramente por Uruguaiana, mas pelo ser humano.
Uruguaiana, Fronteira-Oeste, Rio Grande, América Latina . . .
6) Quais seus próximos passos? Quais filmes ou peças virão? Como vê seu futuro político? Haverá um teatro municipal em Uruguaiana?
MR- Já estamos nos preparativos para filmar O general e o negrinho, de Tabajara Ruas. Em seguida devemos rodar aquele em faço o protagonista. . .
Não penso em retomar a carreira política com cargo eletivo. Penso que minha contribuição em nível de projetos de lei já foi dada. Não penso em me candidatar...
Quero me dedicar somente ao teatro e ao cinema, mas sei que são caminhos difíceis. . .
Haverá um teatro municipal em Uruguaiana. Está encaminhado. Já há um espaço desapropriado, projeto encaminhado e brevemente teremos um teatro municipal em Uruguaiana.
RETORNO - 1. Aviso aos colegas da mídia: a reprodução na íntegra desta entrevista exclusiva pode ser feita mediante acordo com o editor do DF. A reprodução parcial destas frases maravilhosas, é livre, desde que seja citada a fonte (o DF é campeão mundial: citação zero na grande imprensa). 2. O crítico Inacio Araujo publicou ontem, domingo, um artigo sobre Deus é brasileiro, de Cacá Diegues, com o mesmo enfoque usado por um ensaio meu publicado aqui no dia primeiro de maio de 2003, e que tinha por título Deus é cineasta. O conceito do Deus cineasta foi abraçado pelo crítico da Folha de S. Paulo, que escreveu o seguinte: "Deus-de Mille: isso é o máximo a que pode aspirar um cineasta: ser um organizador do mundo, modelá-lo, enformá-lo". Disse eu há mais de dois anos: "O Deus Cacá encara a criação do mundo como um filme".
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