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6 de setembro de 2005
O DNA BRASILEIRO
A sorte sorria no final do expediente: havia, enfim, um ônibus quase vazio em pleno horário do pico. Aboletados com o nariz na janela, poucos felizardos como eu despediam-se do terminal completamente cheio, de pessoas que esperavam outras linhas. Aquele trajeto servia para meus propósitos e murmurei: que maravilha. Mas no meio do caminho ouvi um baque no corredor do ônibus, um pouco atrás de mim. Uma senhora totalmente estendida no chão e desacordada, seguia viagem. Imóvel, atraiu atenção geral. Os passageiros gritaram para o capitão e o imediato a bordo, motorista e cobrador, que pararam o veículo que estava em marcha célere pela estrada. Começou então a sessão impressionante da mulher ainda desacordada.
VIOLÊNCIA - Ela encolhia as pernas, levantava e batia fortemente na lataria com seus sapatos pretos de couro, de salto médio e grosso. Os espasmos eram tão violentos que deixaram todos em pânico. O corpo da mulher ia para trás, impulsionado pelas pernas e cotovelos, em direção à porta, que tinha sido aberta pelo motorista. Não houve dúvidas: ela embicou pela saída de cabeça e colocou metade do corpo para fora. Gritaria geral. Foi então que alguns, açulados pelos gritos de todos, seguraram a vítima pelas pernas, evitando que se atirasse na margem da estrada. Trouxeram o corpo de volta ao chão do ônibus. A força da mulher era impressionante. Epilepsia, falei, mas isso não explicava nada. Para mim, as forças latentes e potenciais daquele corpo submetido à tortura da vida brasileira decidia se insurgir, se desesperar, mostrar a força que tem, inconsciente, contra as contingências que a colocam uma canga diária. Psicanálise de subúrbio? Nem tanto. Damos nome aos eventos, mas eles, quando se manifestam, são inomináveis. Nunca tinha visto nada igual. Tinha lido sobre, sabia de casos e acontecimentos, mas jamais presenciara um ataque daqueles. A mulher, de cabelo preto e farto preso na cabeça, vestida pobremente, mas com dignidade que a pobreza pode oferecer, usava uma calça e uma blusa que deixavam à mostra seus tornozelos e umbigo. Ela simplesmente se entregou.
FUGA - Onde estava eu no meio da gritaria? Louco de tensão, aporrinhado com mais aquela dificuldade, já que nos últimos tempos os ônibus da ilha resolveram bater, fruto da velocidade e falta de preparo de alguns motoristas. Há também engarrafamentos freqüentes, já que ninguém faz nada pela estrada, que tem um posto fantasma de pedágio, que um dia ressuscita. Há briga judicial contra o oportunismo de cobrar das pessoas que vão trabalhar. Os passageiros que presenciaram o evento não queriam se envolver. Custaram a segurar a pessoa em estado de fúria animal. Não existiam celulares disponíveis para pedir socorro, já que um telefonema iria amarrar o voluntário até o final dos acontecimentos. Havia uma tendência geral de escapulir. Foi o que fiz, pegando carona em mais cinco passageiros. Me mandei para um ônibus que parava recolhendo quem quisesse ir embora. A mulher estava sendo atendida, pensamos nós. E lá nos fomos, exaustos, para casa, neste lugar que tem tudo para ser um paraíso, mas acaba revelando forças que ninguém segura.
EUGENIA - Uma dessas forças são as certezas eugênicas. O governador do Estado de Santa Catarina, Luiz Henrique da Silveira, publicou um artigo no jornal A Notícia, de Joinville, a terra que o elegeu prefeito e seu reduto político, intitulado O DNA Espartano. Passou desapercebido de todos por aqui (ninguém leu ou todos concordam?). Não fosse a Folha de S. Paulo abrir a boca no ultimo sábado, passaria em branco. Diz o governador a certa altura do artigo polêmico, que invocava o exemplo espartano para o que queria provar: "As pessoas poderão se valer da ciência, para evitar que seus filhos nasçam feios, deformados, deficientes ou idiotas. Ou até mesmo - e essa vai ser a grande questão do século - escolher para que as crianças nasçam clones de algum gênio ou adônis. Nesse mundo de notícias tão ruins, esta é a mais alvissareira de todas: a eugenia, doravante, vai ficar por conta dos prodígios da ciência, não da barbárie das adagas". O governador, ermo de ghost-writer, confundiu biotecnologia com eugenia. O que se faz com porco e planta não se faz com gente. Ou pelo menos não se deveria fazer, se é que valeu alguma coisa os exemplos históricos como o nazismo. O escândalo não foi tanto a confusão pseudo cientifica de LHS (ele simplesmente pesou a mão ou acredita mesmo nessas coisas?). O escândalo foi que a opinião pública em Santa Catarina não acusou o golpe. Costumo dizer que quem tem raça é cavalo, não gente. Somos seres culturais. O que nos define é a cultura, não os cascos.
FERIADO - É assustador o que corre na internet. O ódio e a paranóia se manifestam com tudo, de um e de outro lado do balcão. Que Deus nos livre nesta Semana da Pátria. Que o corpo exausto da nação não fique desacordado enquanto se debate no chão da nossa desesperança. Se acontecer o pior, nada poderemos fazer. Seremos testemunhas, jamais protagonistas.
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