26 de agosto de 2004

VERISSIMO E O FALSO PARADOXO GAÚCHO

Gosto, como todo mundo, de tudo o que o Luis Fernando Veríssimo escreve. Mesmo quando aborda assuntos que não domina (o que é raro), sai-se sempre bem por meio do brilho das suas generalidades. Por ser um sucesso, fica muito melhor implicar um pouco com ele, especialmente quando Veríssimo, um mestre do consenso cruzado pelo espírito crítico e vasta erudição, escreve sobre algo que pode incomodar muita gente, e portanto afastar leitores, como é o caso de Getúlio Vargas. LFV não afugenta leitores, por isso é super cuidadoso quando dá, por dever de ofício, uma no cravo e outra na ferradura.

CIDADES - O artigo de Veríssimo, publicado hoje no Estadão, defende que o gaúcho é paradoxal (oligarquia rural produzindo populismo urbano). Aborda Getúlio como um caudilho sem estampa e comenta que sua presença física estaria mais próxima de Franco, ditador espanhol. Veríssimo foi criado nos Estados Unidos pelo pai, gaúcho de Cruz Alta, que inventou uma editora, a Globo, para colocar-se entre os grandes mestres da literatura mundial da época, como não cansa de repetir o Wagner Carelli. Entende pouco de gaúcho, pois acha contraditório um Estado agropastoril produzir lideranças anticonservadoras. O Rio Grande do Sul é, ao contrário, um lugar pioneiro da indústria brasileira. Vocês podem rir o quanto puderem, mas é a pura verdade. Enquanto Minas e São Paulo reduziam seus horizontes ao extrativismo puro e simples (café, leite, minérios era hegemônicos, já que a indústria ainda estava na primeira infância nesses Estados) o Rio Grande do Sul dependia largamente do processamento da carne para produzir o charque e enfrentar a concorrência argentina e uruguaia. Os grandes frigoríficos internacionais (indústrias poderosas) instalaram-se no Rio Grande do Sul no século 19. A tal sociedade agropastorial produziu, junto com a cultura guerreira de defesa do território e da afirmação da soberania, um universo urbano exemplar (onde as cidades, seguindo as observações de Sergio Buarque de Holanda em suas Raízes do Brasil, obedecem à proposta espanhola de planejamento urbano, ao contrário da vertente urbana portuguesa, em que as ruas seguem os contornos da paisagem e não seguem nenhuma planificação).

DIALÉTICA - É Jorge Luis Borges que nos ensina que são as cidades produzidas pelo pampa que geram pessoas cultas, que por sua vez criam uma sofisticada cultura fundada na terra. Érico Veríssimo é um exemplo: escritor que fazia sucesso com dramas urbanos, aprofundou-se no mundo rural com sua obra-prima, a trilogia O Tempo e o Vento. O gaúcho nasce na literatura moderna com o pelotense João Simões Lopes Neto, um artífice da linguagem radicalmente criativa, que influiu diretamente em Guimarães Rosa, e com Érico Veríssimo. Getúlio Vargas não foge à regra. Ele não precisava usar bota e bombacha. Trabalhou sempre de terno, como advogado e político. Colocou farda quando fez a revolução, mas voltou imediatamente aos trajes civis. Não foi um caudilho, foi um estadista avançado, que levou para todo o Brasil o que viu no Rio Grande do Sul: a importância da atividade industrial, que se opõe ao extrativismo. Colocava a indumentária gaúcha como Luis Gonzaga, que vivia de terno, colocava gibão de couro e chapéu de cangaceiro: para fazer cultura e política, para trabalhar o imaginário, para identificar-se com o povo, jamais porque era um oligarca populista. LFV acha que Oswaldo Aranha tinha mais o físico de um caudilho do que o baixinho Getúlio. Isso é de um mau gosto atroz, que me perdoe o grande escritor criado em Washington e Nova York e que hoje vive uma boa parte do ano em Paris. Oswaldo Aranha foi secretário-geral da ONU, e tinha o porte de um estadista desde que fez política no interior do Rio Grande do Sul. Era de uma família rica, de origem paulista e impressionou estadistas como o presidente Roosevelt pela verve, o charme e a grande cultura.

POPULAR - Não há, portanto, paradoxo gaúcho. O povo do Rio Grande do Sul está dividido, como todos, entre conservadores e progressistas. Mas pela sua longa experiência guerreira, soube produzir políticos escaldados na luta e que implantaram transformações profundas no Brasil a partir da criação de um estado diferenciado daquele da República Velha, aquele sim uma oligarquia terrível, capitaneado por esnobes que se achavam europeus e desprezavam o povo. Getúlio sabia que era brasileiro. E gostava de fazer parte do povo que amava. Foi revolucionário para poder mudar o Estado e, na seqüência, o país. Soube se impor, soube compor e no momento em que armaram o banquete da sua desmoralização, puxou a toalha da festa. O povo então viu o que tinha perdido. E saiu quebrando tudo.

RETORNO - Tinha errado a terra natal de Erico Veríssimo, sorte que o conterrâneo e parente João Cesar Massia me corrigiu. João César é autor de carta magnífica sobre a Uruguaiana da nossa infância.

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