9 de agosto de 2004

O SABER LISO DE AZULEJO

Ao seguir a esmo pelas ruas, Sinistrus Joe foi parar na palestra do ínclito Pífio Esmeril, professor doutor formado pela Universidade do Vale do Níquel, na Monrovia Central, e autor da tese A Necessidade de Ser Europeu no Gueto Conhecido como Europinha. De olhar azul furibundo e vestindo conjunto preto apertado, Joe afundou a cabeça (encimado por raridade capilar e adornada com modesto rabinho de pônei) numa suave poltrona de corino que ajuda a compor um teatro pouco conhecido na periferia da cidade. Joe adormeceu quando o sábio teceu longa aleivosia sobre o azulejo azul como representação da consciência do homem comum.

CONFORTO - Sinistrus deu um trato no visual e agora, além do uniforme, usa bota de salto recém escovada (presente do seu amigo milionário), mas costuma futucar lixeiras chics do centro e dos shopping atrás de sobras de latinhas de refrigerante. Ele implica com a mania brasileira de esmigalhar latinhas com os pés para a tal da reciclagem e costuma dizer que o brasileiro desceu tanto na escadaria do desemprego que encara a mendicância como profissão nobre, já que esse nicho há muito está lotado em todos os pontos possíveis do Brasil. Por isso descobre estranho prazer quando vê uma lata que escapou do massacre e sorve o líquido viscoso de algo inominável, enquanto olha para os lados para espantar quem se aproximar dele. Mas como tem apurada percepção, descobriu um grupo fora dos padrões normais e seguiu-o, palmilhando cada pedaço de calçada com o cuidado dos leopardos. Viu então que eram estudantes que cumpriam agenda escolar indo a pé, em longa caminhada, até a palestra de Pífio Esmeril. Este, alto, parcialmente calvo, de terno cinza claro e grandes manoplas expressivas, atrás de uma exígua mesa (para não caber mais ninguém ao seu lado) tergiversava sobre sua tese como se esta fosse o único ponto importante do saber mundial. De butuca na platéia estranha, Joe tentou se esconder, sentado para não ser descoberto, mas o súbito conforto o engolfou entre um parágrafo e outro das boutades verbais do nobre lente.

PULO - Acordou de um salto quando ouviu a palavra caboclo, dita de maneira cheia, como se uma batata quente com a tessitura de uma bola de ping pong ribombasse no céu da boca do palestrante, assustando os ouvintes. Pífio Esmeril notou a agitação do nobre colega e, opondo-se a seus hábitos, quis saber a opinião do estranho ser vestindo preto e que ostentava credibilíssimo cavanhaque. O que o senhor acha...entendeu Joe, que subitamente deu sua resposta padrão: quem pensa que é europeu não passou de Niterói! Disse isso num grito, para compensar o que tinha ouvido do outro, pois agora toda a palestra inoculada durante o sono vinha à luz como um monstro do lago Ness. Pífio tinha sustentado a idéia de que a consciência tem um brilho azul e insano e se desdobra infinitamente em superfícies eternas, jamais mergulhando em qualquer ponto do universo. A profundidade era exclusiva de deuses e de escolhidos como ele, Pífio, mas no comuns dos mortais, especialmente os que eram objeto do seu estudo, nunca atingiam a altura máxima de dois milímetros. Daí para a palavra caboclo foi um pulo.

GLAUBER - Entendo, respondeu Pífio, e continuou sua arenga sem se importar com as breves palavras do seu, agora, oponente. Sinistrus viu que tinha chamado a atenção do grupo. Alguns, espantados por vê-lo ali, depois de terem notado sua presença no centro da cidade, levantaram-se para falar com algumas autoridades presentes, que usavam farda azul e vasto revólver na cintura. Joe escafedeu-se não sem antes gritar: mais fortes são os poderes do povo! Joe sempre usa Glauber Rocha quando pressente o perigo.

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