22 de agosto de 2004

SOB O CÉU DO CRUZEIRO



Antes da liberdade de expressão que adotei aqui no Diário, não tinha noção do estrago que sofri nestes 40 anos de ditadura. Neste longo exílio intelectual e político, tornei-me, supostamente para sobreviver, uma pessoa oposta ao que realmente sou. Precisava agradar aos outros, não chocá-los com minha memórias e posições. Adaptei minhas idéias, comportei-me como gado no curral. Minha única saída foi a literatura. Na poesia, consigo dizer realmente o que sinto e sou. Mas a poesia também foi confinada e esperaram que eu esquecesse completamente de mim para enterrar cada livro suado colocado no ar. Sorte que sou uma criatura nascida e criada sob o céu do Cruzeiro do Sul. Como disse num poema, eu não tenho voz ativa, mas tenho a minha palavra.

SONHOS - Assumir completamente o que chamam de trabalhismo, e que eu batizo de memória política, é a maneira que encontrei de me livrar completamente dessa herança. Livrar-me do que me formou deve ser uma decisão minha e não uma imposição alheia. Não me venham dizer como devo pensar e que preciso me envergonhar de achar isso ou aquilo do Brasil, esse vírus que contraímos cedo e dele adoecemos, como disse ontem para meu amigo Zé Gomes, o maior compositor do Brasil. Não que o trabalhismo, que vingará, pertença ao passado, o passado pertence ao passado. Apenas busco o acervo perdido para resgatar-me, reencontrar-me menino e seguir meus passos até agora, de coração na mão. Pela decisão de dizer, rompi vínculos que criei arduamente com muitas pessoas. Não quero mais que me aceitem, que me perdoem, que me convidem para jantar. Sou um urso que hiberna na sua vontade de mudar o mundo. Gostaria que o país onde vivo não fosse uma armadilha mortal, onde é preciso enfrentar a força animal dos contemporâneos, sempre prontos para dar o bote. Gostaria que o país onde vivo não fosse um jogo de cartas marcadas, onde todo esforço resulta num bocejo. Que não fosse um brinquedinho internacional, pois a simples menção do nome do nosso país já provoca imediatamente gargalhadas (vi isso várias vezes). Gostaria que não exportássemos carne para os russos nem plantássemos tanta soja. A carne deveria ser usada para engrossar os gambitos das crianças pobres e o trigo deveria se espraiar no espaço que o alimento de porco europeu ocupa hoje em todo o território. São sonhos vãos, já que todos estão convencidos do contrário.

MOEDA - Lembro do cruzeiro, a moeda. Um cruzeiro trazia a efígie do Almirante Tamandaré, dois cruzeiros a de Floriano Peixoto, cinco a do Barão do Rio Branco, dez a de Getúlio Vargas. Com essa moeda fizemos nossa infância. Juntamos os trocados para inaugurar uma conta poupança na Caixa Econômica Federal e então comprar as camisetas brancas e a fita azul que cruzava o peito, costurada pela nossa cozinheira, Rita. Com os trocos repassados pelo pai íamos ao cinema, comprávamos revistas em quadrinhos. Depois o dinheiro foi virando pó e ele mudou de cara mil vezes até chegar a essa caução colonial que é o real, nome asqueroso, de retrocesso ao tempo do Reinado. O cruzeiro era nossa palavra chave. Era moeda, era constelação, era letra de música. Sentávamos na frente da casa, na calçada bordada de cadeiras preguiçosas, e ficávamos vendo o Cruzeiro. Hoje vejo novamente todas suas estrelas, como um time perfeito, caindo de cabeça no horizonte que existe bem em frente de casa. Parece uma gaivota, um pássaro dos deuses a cumprir seu trajeto sem dar-nos a mínima. Esse vôo serve de parâmetro para nós, o país do Cruzeiro. Quem dera tivéssemos de novo uma moeda forte, respeitada, uma infância protegida, uma vida adulta plena. Hoje nem existem mais calçadas. Perto daqui, uma estrada serve de rua, avenida, sem acostamento nem nada. Ciclistas e pedestres disputam a poeira da margem da rodovia, cruzada a todo instante por caminhões, carros, ônibus. O caos que se instala no país sem planejamento, atirado ao Deus dará, aberto para o mundo seco por sangue e terra. Somos a Ilha Brasil, situada no Caribe, que esmola ouro na Olimpíada. Nem parece que temos um espaço gigantesco de terra, água e ar. Pagamos um mico brabo por termos nos afastado do nosso destino. Desvirtuamos nosso pensamento, podamos nossa ação. Atravesso a rua dos assassinatos sem olhar para o lado. Estás muito brizolista, me dizem, rindo. Não, nunca fui qualquer uma dessas gavetas da política. Sou apenas uma presença humana sob o céu do Cruzeiro.

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