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20 de agosto de 2004
UMA FALSA REVISÃO HISTÓRICA
Agora que a obra de Getúlio Vargas foi destruída e o Brasil voltou a ser o brinquedinho do mundo, graças aos governichos de Sarney a Lula, comete-se a heresia de fazer tardiamente o que a História exigia o tempo todo: encarar o grande presidente sem as picuinhas que mancharam a sua memória. Pena que esse tipo de falsa revisão histórica (que só chega agora, não por coincidência, depois da comoção provocada pela morte de Leonel Brizola) envolva gente de bem como nosso amigo Antenor Nascimento, autor da matéria de capa A Força do Líder, da última Exame. Os textos de Antenor, em sua maior parte, procuram fazer justiça à herança de Vargas. Mas o grave é o tratamento dado à edição e os artigos assinados por FHC, Maílson da Nóbrega e Bóris Fausto.
FECHAMENTO - Antenor Nascimento, jornalista de primeiríssimo time, não coloca em sua matéria que a definição de Getúlio como inventor do Brasil moderno é de Samuel Wainer, que assinou essa frase numa edição especial do Folhetim, encarte da Folha de S. Paulo criado por Tarso de Castro e editada por este e Nelson Merlin. Usa a expressão, infelizmente sem dar o crédito, para dar o tom desta edição 824 da revista. Ao fazer justiça a Vargas, ele destaca algumas colocações importantes como desmentir a acusação de que as leis trabalhistas eram de inspiração fascista. A matéria coloca como fonte das leis a OIT, Organização Internacional do Trabalho, mas Gilberto Vasconcellos já foi mais fundo, pois descobre as fontes das leis de amparo ao trabalhador no Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e em Julio de Castilhos, inspirador de Getúlio Vargas em quase tudo, na maneira de governar, na educação etc. O texto de Antenor é um primor, mas o fechamento (títulos, olhos, legendas, fotos) é de uma má vontade sem fim. Primeiro, adoram colocar o Getúlio apenas de bombacha, como se ele fosse um palhaço fantasiado de gaúcho. Getúlio pertencia a uma geração letrada, sofisticada e rica de jovens intelectuais, conforme podemos ver nas memórias de João Neves da Fontoura, o grande tribuno da revolução de 30. Cosmopolitas, eles tinham acesso à cultura internacional e liam no original os grandes autores da época. Por isso é de gargalhar que Antenor, paulistano da gema, fique impressionado como Getúlio conseguiu liquidar a ditadura civil de 40 anos em apenas um mês, se ele, diz Antenor, era um gaúcho de uma cidade do interior, São Borja. Como si ser gaúcho fosse como ser um macaco, uma criatura ágrafa, que nasce em cima de um cavalo e se afoga em mate.
POVO - Quem nasce em Sampa acha que todo o resto do Brasil é um grotão só. Pois deviam conhecer São Borja, Uruguaiana e ter contato com um pouco de civilidade e civilização. Conheçam esse gentleman, Cabeto Bastos, esse ator magnífico, Miguel Ramos, esse fotógrafo de primeiro time, Anderson Petrocelli, esse músico de vanguarda, Bebeto Alves, esse poeta, J.A. Pio de Almeida e me digam se na fronteira tem gente bruta. Venham apertar as mãos das pessoas da fronteira gaúcha e entendam porque mudamos o Brasil quando nos levantamos em armas como um só homem e nada nem ninguém conseguiu nos segurar. Porque tínhamos Oswaldo Aranha, Batista Luzardo, Getúlio Vargas. Por isso, quando morre Brizola o povo sai à rua para chorar o choro perdido do desespero sem fim. Porque o povo sabe quem sempre esteve ao seu lado. A isso chamam populismo, os bandidos que venderam o Brasil. Além de colocar Getúlio de bombacha, a edição estampa fotos grotescas de Franco, Mussolini e Bismarck, como se Getúlio pertencesse a um biotipo de ditadores totalitários fantasiados. Getúlio era o fino da bossa. Escrevia o fino, era um orador fantástico e tinha um notório bom humor. Aliava essas qualidades a uma seriedade para governar reconhecida em outro texto da edição, da autoria de Maílson da Nóbrega. Este, declara o óbvio: Getúlio jamais teve irresponsabilidade fiscal e quem detonou as contas públicas foi o mineirinho sestroso, Juscelino Kubistcheck, eleito nas águas de Getúlio Vargas (apoiado pelo PTB e PSD, fundados por Vargas). JK, hoje tão incensado, foi quem deu início à dilapidação do patrimônio nacional criado pelo grande presidente. Mailson cita Boris Fausto (autor de outro texto na edição), que reforça mais uma calúnia: Getulio teria reprimido os esforços organizatórios da classe trabalhadora urbana fora do controle do estado atraindo-os para o apoio difuso do governo. Como lembrou uma vez Brizola, quando Lula chegou no ABC, o sindicato estava lá porque Getúlio garantiu a existência da organização com o apoio da polícia, já que os patrões não queriam nada disso.
SALVAÇÃO - Exame traz também um texto absolutamente execrável e mal escrito de autoria do FHC, um pernóstico criminoso que usa expressões como algo fundamental. Parece aqueles redatores ruins que implantam um a rigor para dar consistência ao texto frouxo. Mas FHC é a pessoa que jogou o Brasil fora, vamos pular. O importante é comentar o preciosismo de Boris Fausto, que usa os jargões velhos dos anos 90 para justificar a destruição da obra getulista. Ele diz que as reformas, a responsabilidade fiscal (tudo o que pregaram e jamais fizeram), além das as privatizações (sucateamento da riqueza do povo), a abertura (destruição do parque industrial brasileiro, para implantar a presença maciça da pirataria internacional) substituem o sistema criado por Getúlio. Este estaria defasado e encarnaria o papel de herói salvador da pátria. O tosco senhor esquece que Getúlio é considerado um salvador porque fez coisas concretas a favor do povo e do Brasil, não porque fosse um mágico especializado em ludibriar quem quer que seja. Se fosse um enganador, estaria esquecido. Exatamente porque foi sério, responsável, profundo e um gênio político é que é lembrado e nulidades como Fausto precisam pagar o mico de tentar enquadrá-lo. Fausto, respeite quem morreu pelo país. Honra e glória aos heróis da pátria.
RETORNO - Brizola morreu e a mídia foi alegremente enterrar o trabalhismo. Talvez venha de mais esse equívoco a tranqüilidade com que se tenta dar agora crédito ao presidente Vargas. Como não há mais perigo de se cumprir novamente a profecia de Samuel Wainer (Ele voltará), chegou a vez de relaxar e gozar. Só que o resgate é feito sempre nas águas pôdres da ilusão colonialista, de que temos um destino a cumprir, o de sermos periferia para o resto dos tempos (por isso Vargas, o inventor do Brasil soberano, continua sendo isso e aquilo, na visão torpe dos seus inimigos). O que Lula (que considera os jornalistas uns covardes) está fazendo com a Amazônia é motivo para insurreição popular em todo o país. Lula, num ato nada falho, disse que gostaria de aprender com o ditador da República Dominicana como ficar 37 anos no poder. Vejam aí a ironia: esse tipo de gente que governa o país adora adotar os crimes que eles sempre atribuíram a Getúlio. Lula deve tudo a Vargas e Brizola. Estudou no Senai, fundada na época do Estado Novo e foi fazer carreira no sindicato, garantido por Getúlio com o apoio da polícia. E elegeu-se com o apoio do trabalhismo. O samba não mente: ele pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão.
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